Sentai-vos, cavalheiros! Sentai-vos e erguei vossas cabeças do lodo escuro da embriaguez!… Tu sejas maldito, Wolfgang. Sejas maldito por ergueres na minha vida a mortalha decrepita que encobre os fantasmas de um passado horrível… Tua narrativa fez vibrar no meu ser um eco quase falecido, uma verdade que enterrei há anos, junto com uma solene promessa de silêncio. Tua narrativa foi como o vento, que remove da lápide abandonada as folhas mortas que lhe encobriam as inscrições e permite que se leia o nome do defunto que apodrece. Se for a verdade que move vossas palavras – e ela há de mover as minhas – eu contarei uma história tão terrível que, se a desgraça é alimento para os malditos, preparai-vos para serem fartos!… Era na Inglaterra que eu morava nessa época, a cidade… esqueci-me. Sempre vivi a meu contento: como vagabundo não me faltava comida nem o dinheiro para pagar o vinho e a meretriz. Eu era como um nômade que passava a vida pela Europa. Provei de todos os lábios e bebi de todas as taças em orgias das quais nem Satã ouvira falar.
Com o passar do tempo isso me cansou. Eu tinha então vinte anos. Passei a perceber que perdia o gosto por tudo: a vagabunda
com seu corpo lívido e o vinho, que perdia seu sabor a cada dia que passava…
Certa noite, embrutecido pelo álcool, dormi num beco onde dormiam os ladrões e os assassinos da cidade. Roubaram-me todo o meu dinheiro e o que eu tinha de mais valioso na vida: um medalhão de ouro que eu trazia junto do peito. O medalhão que fora de minha finada mãe e que era minha única lembrança do passado.
Minha degradação veio rápida e dolorosa. Eu tentava esquecer embriagando-me o dia inteiro, não importando se era dia ou se era noite… Foi então que tive um lampejo de sanidade… decidi me matar… Mas, antes, uma última orgia em memória de meu suicídio. Bebi o dia todo, sorvendo a cada gole o último vinho de minha vida. Já à noite, fui a uma taverna e sentei-me sozinho em uma mesa num canto escuro. Surgiu do nada um homem não muito alto de barbas brancas e trajes imundos que dizia ser Satã – devia ser louco – de qualquer maneira, convidei-o a sentar-se e beber comigo.
– Então, és Satã? – perguntei sem interesse.
– Sou! disse ele bebendo ruidosamente, como um porco.
Não custou para que ele tombasse ébrio. Quanto a mim, eu continuei bebendo. Foi quando um brilho chamou-me a atenção, um brilho dourado que pendia do pescoço daquele vagabundo, olhei mais de perto, o brilho parecia-me familiar. Era o meu medalhão que ali estava!
Arranquei-lhe o medalhão com força, saquei meu punhal e degolei-o ali, na mesa. O sangue escorreu rápido e logo começou a pingar ao chão… ele não deu sequer um grito ou se mexeu, provavelmente o bastardo jamais soube que morria. Depois peguei uma garrafa e fui-me dali.
– Vós bem sabeis, companheiros, o quanto são frias as noites nevoentas da Inglaterra. O nevoeiro cobria tudo e o eco de meus passos nas ruas desertas fazia-me crer que alguém me seguia…
– Desgraças! desgraças! – disse Wolfgang interrompendo, após um gole de vinho e uma baforada no charuto – Degolastes o homem simplesmente porque te aprazia?
– Ah! louco, nada sabeis! Degolei-o por tocar o que me havia de mais sagrado nesse mundo podre: a minha mãe. A única lembrança dessa angelical criatura que um deus tão cedo levou de mim
– Despreza o que esse doido fala e continua tua história Sigfried! – disse um dos moços que ali se encontrava.
Todos fizeram silêncio e Sigfried continuou:
– Como eu disse, era fria a noite, mas eu não a sentia- eu tinha o fogo do vinho para me aquecer! – de modo que perambulei sozinho até que minha garrafa se esgotasse e eu tombasse bêbado numa poça de lama que havia pelo caminho. Fiquei ali, desacordado por longas horas e em meus sonhos eu tentava me matar de várias formas, mas não conseguia.
– Despertei ouvindo um som estranho… passos e soluçares de várias pessoas. Abri a custo os olhos – o sol ia alto e feria-me a visão – era um cortejo fúnebre que passava. O caixão ia aberto, carregado por quatro homens, um deles bem velho e chorando muito – devia ser o pai do defunto. Ergui-me com uma ideia diabólica na cabeça: desdenhar da dor daquelas pessoas, cuspir na face daquele defunto, rir das lágrimas deles. Quando me aproximei as pessoas me olharam com horror. Eu ria e blasfemava como um doido, aproximando-me do caixão que os homens carregavam. Saquei meu punhal para retalhar o defunto ou matar quem tentasse me impedir de fazê-lo
– O que há, Sigfried? Por que parastes tua narrativa? Pareces pálido!
– Oh, não concebeis a minha visão! Era um anjo!… Uma moça tão bela que morrera… Ela jazia ali, com as mãos unidas sobre o seio, os cabelos longos e soltos sobre os ombros. Havia naquela palidez cadavérica um anjo que parecia adormecido…
Não sei por quanto tempo fitei aquela imagem, sei que vesti novamente o meu punhal e fui-me embora, mudo. Não dei importância. Mais tarde, na pensão onde eu morava, procurei dormir. O frio da noite, o sono ao relento e no lodo, causaram-me uma febre terrível. Delirei, e nos meus sonhos aquele pálido anjo aparecia desnudo e belo. Primeiro eu a via em sonhos breves, febris e confusos. Depois, a frequência de meus delírios aumentou… e sempre ela…
Assim passaram-se três dias e três noites, quando finalmente recuperei-me. Entretanto, a visão não me abandonara! Eu a via ainda! Uma sombra que se movia, um vulto na escuridão: tudo era um painel que minha mente se encarregava de pintar com a imagem dela! …
Tudo tornou-se em obsessão, obsessão e loucura! À noite, quando eu me deitava para dormir e tudo era silêncio eu a via. Fechava meus olhos para fugir daquele fantasma pálido e lívido… embalde. Então, foi aí que veio a loucura! Eu caminhava pelos labirintos das ruas noturnas e a via sempre, como que sorrindo ou simplesmente caminhando em meio às trevas dos becos, ao aproximar-me… nada. Não! Não fazeis ideia desse pesadelo horrendo! Nem um minuto de paz! Nem nos sonhos nem na realidade!
– Era a loucura… – disse Wolfgang sorrindo.
– Não Wolfgang! Era o amor… Juro-te que amei aquele anjo morto de tal modo que nunca me foi possível amar os vivos. Nunca uma beleza tão pura havia habitado a terra ! Nunca meu coração havia pulsado por um sentimento que não fosse o prazer causado pelo corpo da mulher de aluguel ou o ódio e o assassínio.
Certa noite armou-se uma tempestade imensa que desabou sem remorsos sobre a cidade. Decidi deitar-me para tentar mais uma vez um sono que, com certeza, me faria delirar mais uma vez com a palidez inanimada daquela donzela que a morte beijou. As horas desenrolaram-se vagarosamente sobre minha insônia e minha dor.
Loucura! Mil vezes loucura! Ê o que vos digo. O som compassado e monótono do relógio, a chuva, a insônia, tudo isso me enlouqueceu. Desesperado, saí correndo de meu quarto. Para onde? Não o sabia.
Corri pelas ruas cego pelo negror da noite e, às vezes, ofuscado por um súbito raio que cortava o céu. Não sei precisar quanto tempo durou esse frenesi. Sei apenas que parei, petrificado de horror, ao deparar-me com uma forma, um vulto de mulher que me olhava fixamente… era uma estátua… uma estátua de anjo! olhei ao redor de mim: aqui, ali, além, erguiam-se cruzes do chão lamacento. Era um cemitério!
O que se sucedeu foi algo tão terrível que sinto um frio a percorrer-me todo o corpo! Foi súbito: procurei pelas tumbas aquelas que eram mais recentes, que tinham ainda a terra revolvida pelo recente despojo que a ela se agregara e cavei. Cavei ávido e louco os túmulos daquele cemitério, O primeiro não era ela; era uma outra mulher que apodrecia a podridão das carnes que refervem de vermes e revelam o asco de um corpo humano. A segunda – custava-me abrir os caixões um quase esqueleto. Eu tinha já os dedos feridos e sangrando. Encontrei-a após três outras visões de horror!
Por uma razão que eu desconhecia, ela conservava ainda a beleza virginal que me havia encantado. Nem um sinal de mácula havia naquela pele alva ou naqueles lábios que eu havia sonhado…
– Ah, basta Sigfried! Falais como um poeta enamorado! Quereis então convencer-me que aquele cadáver exalava ainda o aroma da vida?
– Sim, L’Estat! Havia ainda naqueles cabelos o mesmo cheiro delicado que havíeis de ter sentido n’alguma donzela!
– Tendes certeza que estava morta? Talvez a catalepsia…
– Era morta! Fria quando a ergui nos braços… Ah, vinho! Deem-me mais vinho, malditos! Quereis que eu continue a narrativa e tenha a garganta seca?
Beberam todos. Sigfried continuou.
Como eu disse, ergui-a nos braços, para fora da cova e levei-a para longe dali. Creiam que não exagero quando me refiro a ela como “anjo”. O sudário branco e úmido deixava transparecer o entalhe dessa palidez puríssima e os cabelos negros e longos apenas aumentavam a vaga crença de que não se tratava de uma simples jovem que morrera.
Foi fácil levá-la para meu quarto: as ruas desertas eram escuras e ainda que me vissem, creriam que eu somente auxiliava uma moça acidentada. Era perfeito!
Quando cheguei, repousei-a no meu leito e despi-a do sudário úmido da tempestade -era linda essa forma morta e pálida! – fitei por um longo tempo a imagem do anjo que parecia adormecido, meu candeeiro dava-lhe um aspecto sobrenatural, a face branca como mármore, os cabelos negros, desgrenhados, os lábios azulados… Imprimi, ardente, os meus lábios sobre os dela, repetindo o gesto de Deus ao dar vida ao homem… Embalde, a virgem continuava morta!
Conforme passavam os dias, mais eu amava aquele troféu macabro que eu havia profanado numa noite tempestuosa. As vezes, no frêmito das noites de amor que eu mantinha com o cadáver, parecia-me observar nos lábios do anjo um esboçar de sorriso… um apertar de pálpebras… Por muitas vezes, cri que a donzela retornaria à vida. Correram assim duas semanas…
Certa vez, levantei-me cedo – eu dormia as minhas noites no mesmo leito que o cadáver e, a ele me abraçava, assim como o marido abraça-se à noiva – para ocultar o cadáver: por duas semanas eu impedira a velha dona da pensão de adentrar o meu quarto e limpá-lo. Mas, isso se fazia necessário agora.
Escondi o corpo num armário que tranquei à chave e ordenei que a velha entrasse para fazer a limpeza semanal. Tão logo a velha entrou, eu saí. Vós bem sabeis a repugnância que me causam os velhos!
Voltei o mais rápido que pude: o anjo estava intacto!…
Ao dia seguinte sai novamente; não devido à limpeza: eu tomava novamente gosto pela vida!
Realizei por seis dias essa rotina: levantava-me, beijava a face do anjo e saía, retornando à noite – após bebedeiras, roubos e assassinatos que eu cometia por encomenda. O cadáver me aguardava repousado em meu leito.
Nem um sinal de podridão havia! Nem uma ação dos vermes decompositores da vida! Eu estava despreocupado…
– Já concebeis a desgraça que se aproxima? Tendes ideia do que Satã reservou para mim?… Não importa: escutai o resto.
Levantei-me para realizar pelo sétimo dia minha rotina: afaguei a face de minha tétrica amada, beijei-a docemente nos lábios e sai.
Mas, -oh, miséria! – já distante, lembrei-me: sétimo dia! era o sétimo dia! Havia uma semana que a maldita velha limpara meu quarto!… O meu segredo horrendo estava ameaçado!
Retornei à pensão o mais rápido que pude, a fim de impedir que a velha entrasse ainda em meu quarto. Quando cheguei, tudo que o tempo me permitiu foi a audição de um medonho grito de horror que vinha do meu quarto: era tarde!
Subi correndo as escadas que levavam ao meu quarto, tranquei a porta ao entrar; a velha lá estava, pálida e trêmula a olhar para o belo cadáver em meu leito. Ao ver-me aquele decrepto farrapo de ser humano teve ímpetos de correr. Segurei-lhe os braços magros com a mesma facilidade com que seguraria os braços frágeis de uma criança. No local onde eu segurava criou-se quase que imediatamente uma mancha roxa, resultado da pressão de meus dedos.
A velha nada dizia, olhava-me apenas, com o horror estampado na face…
A visão dessa maldita criatura que descobrira meu segredo causou-me um ódio sem par. Apertei-lhe o braço com mais força e ódio. Ouvi um estalo: eram os ossos que se partiam. Ela apenas gemeu por motivo da dor.
De qualquer forma, era tarde: outras pessoas ouviram o grito da velha! Não havia como fugir levando a minha amada!… Tudo isso por culpa daquela anciã desgraçada!
O olhar que lancei à velha foi o bastante para que ela percebesse: era o fim…
Agarrei aquele pescoço com as duas mãos, cerrei os dentes e apertei. Ela debatia-se desesperadamente, erguida no ar pelos meus braços, tentava gritar, embalde: o som não passava pelos meus dedos, que esmagavam sua traqueia. Logo a resistência cessou: a velha entregou-se à morte.
Larguei aquele corpo com violência e pude ainda ouvir o estalar do crânio que se arrebentava contra o solo.
Logo bateram à porta.
Tive então a idéia para escapar de meus crimes: com meu punhal retalhei completamente o cadáver da velha e banhei-me em seu sangue. Depois, peguei o meu anjo nos braços, deitei-o ao lado dos restos da velha, imprimi sobre os lábios dela o meu último beijo, em despedida e esquartejei-a também.
Esquartejar o meu amor foi o que fiz de mais horrível nessa vida, mas minha autopreservação sempre falava mais alto.
Quando abri a porta as pessoas viram aquele quadro de horrores: restos humanos por todos os lados e eu “ferido” e ensanguentado.
Expliquei que os restos eram da dona da pensão e de minha amada noiva. Fora um ladrão, um assassino que as havia matado e me ferido com seu punhal. Quando cheguei-me ao quarto, vi as duas, mortas e esquartejadas; lutei ainda com o facínora, mas ele fugiu. Saltou a minha janela que ficava só um andar longe do chão.
As pessoas creram em minha história e sequer repararam que eu não tinha sangue em hemorragia e nem ferimentos no meu corpo.
Eu jamais retornei a essa cidade… Mas trago sempre junto a meu peito uma mecha dos cabelos de minha amada… Vede!
Sigfried mostrou uma mecha de cabelos negros. um silêncio abateu-se sobre todos…
– O que há, Sigfried? Chorais?!
– O que há, e uma triste lembrança, L’Estat!… Naquele momento, quando eu cravei a fria lâmina no seio da minha amada, eu ouvi-lhe um pálido gemido de agonia…