Giorgio

Ergueu-se um dos moços que ali se encontravam. Um homem de aparência magra, pálida e sombria que, com um olhar vago e um suspiro profundíssimo, esvaziou o copo e falou:

– Também eu amei uma mulher certa vez!… Elenida era seu nome… Elenida!… Nunca se passou um dia sem que eu voltasse a ela meu pensamento e meu pranto. Nunca houve uma prostituta que eu desfrutasse sem ter no peito o vazio e o remorso causado pela lembrança da única pessoa que eu amei na vida.

Conheci-a ainda na infância, eu tinha treze anos e ela dez ou onze – não me lembro ao certo. Nessa época, ambos fazíamos parte de uma aristocracia hipócrita e corrupta que tinha laços de amizade tão fortes quanto os de Brutus ao Cezar; mas nós éramos diferentes

Havia em nós uma afinidade irresistível e nossa amizade crescia.

Essa amizade tinha algo de estranho e triste, algo depressivo que não posso e nem nunca pude explicar. Era como se lamentássemos nossa impotência diante da tristeza um do outro e nos desconsolasse saber que não havia consolo possível.

Conforme o tempo passava, cada vez mais eu aprofundava minha mocidade no vício e nas bebedeiras. Não havia ninguém no mundo que eu respeitasse ou com quem eu me importasse – exceto Elenida, claro. Mas, nessa época, eu ainda não a amava conscientemente.

A verdade, companheiros, é que para mim tudo era uma superfluidade. Tudo era um desperdício de um tempo que iria, inevitavelmente, acabar no abraço úmido da terra sepulcral… Atribuís à minha necessidade o desencanto e o desapego de minha alma? Não! Eu nunca passei fome, nem nunca passei frio. Eu tinha uma mãe preocupada e zelosa, meu pai era rico… ainda assim, eles nada significavam para meu tenebroso ser.

As minhas noites eu passava embriagado pelo vinho ou pelo ópio…

– Ah! Deus, que maçada! – disse Archbald, embriagado – os enamorados deviam saber o quanto são patéticos!

Na verdade Archbald, nem tudo que eu falasse bastaria para descrever a relevância de Elenida em minha vida! …

Assim foi se passando a minha juventude: nós, sempre juntos, sempre amigos… Mas, eu nunca tinha percebido (hoje percebo totalmente) que nosso apego era algo mais profundo. Quando caía a noite eu me transformava em outra pessoa: ia às orgias, deleitava-me no vinho e no meu vicio de ópio. Odiava a todos e a todos eu mataria sem pestanejar só pelo prazer de ver, esvaindo-se dos corpos moribundos, o precioso sangue.

Às vezes, na alucinação de uma dessas noites, eu percorria as vielas desertas da cidade pobre e cometia nos mendigos dali todo o tipo de carnificinas e atrocidades; o sangue não bastava, não bastava! Eu queria ver dor! Eu queria saborear o medo! Matá-los não era o bastante: eu queria despedaçar aquelas almas que eu arrancava dos corpos violentamente. Queria que o sofrimento deles nunca terminasse, que sua dor nunca parasse… Eu queria alguém que sofresse mais que eu…

Foi numa noite fria e solitária que eu percebi tudo. Eu lia um livro em minha biblioteca e fiquei desesperado repentinamente.

Isso era normal; o que não era normal para mim era querer que alguém estivesse a meu lado… esse alguém era Elenida.

Desse dia em diante, passei a olhá-la com uma certa saudade, uma certa necessidade… Sim! Por ela eu abandonara o ópio, mas o meu vício eu apenas substitui por outro: o vicio da presença de Elenida.

– Com todos os diabos, Giorgio! -disse Archbald – se eu desejasse uma história de amor eu leria uma dessas ridículas novelas efeminadas! A tua narrativa está a ponto de fazer-me dormir antes que o álcool faça efeito. Onde está o sangue? A morte? A desgraça? Onde está o acontecimento que faz gelar a vida? Basta desse teu conto florido e entediante! À morte! À morte!…

– Ah, maldito! Calai a boca! Não respeitais nem a dor infinita de um passado?… A morte será tanta, a desgraça será tão completa, que até a tua alma, podre e perdida, haverá de tremer…

Como eu dizia, percebi que o que eu sentia não era apenas o apego de duas almas afins: era o amor. Eu tinha dezessete anos.

Oh, não me entendam mal! Elenida mudou minha vida, mas não transformou minhas trevas em flores. Eu ainda era o mesmo: ainda desprezava todo o resto – talvez com mais força que antes.

Certo dia meus pais foram viajar de carruagem e nunca mais retornaram com vida. A morte os encontrou no fundo de um precipício.

Eu mesmo cuidei dos detalhes do enterro e eu mesmo cuidei em disfarçar o horror dos dois cadáveres desconjuntados pelo impacto da queda… Não se iludam: eu não nutria o menor amor por aquelas duas pessoas que eram meus pais. Eu quis enterrá-los apenas para constatar a podridão dos corpos, e quando os vi, os olhos saltados das órbitas, os crânios esmagados, eu percebi que eram menos que lixo.

Quando a terra os cobriu Elenida estava a meu lado. Sequer uma lágrima eu derramei, na verdade eu só queria rir de uma grande ironia: a vida é como os seres humanos: nada além de podridão.

Cheguei aos vinte anos totalmente fascinado por Elenida. Sua beleza, sua elegância natural: tudo nela era aquilo que eu só poderia sonhar… Até sua inteligência era algo fora do normal: eu jamais havia encontrado alguém com uma inteligência tão grande quanto a minha e a todos eu tratava como vermes; mas Elenida era tão culta e inteligente quanto eu. Em tudo que eu fazia, lia ou escrevia havia sempre a opinião dela e vice-versa.

Apesar de tudo, meu amor era ainda um segredo. Mesmo com toda a nossa cumplicidade, com todos os momentos em que desfiamos a nossa admiração um pelo outro, nada foi dito.

Faltavam cinco meses para os meus vinte e um anos quando sob a luz do luar, eu tomei-lhe uma das mãos e disse que a amava. Ela sorriu e me falou que isso era óbvio para nós.

Foram os dias mais felizes da minha vida, mas Elenida estava sorumbática. Perguntei-lhe o que havia de errado. Ela sabia que tentar mentir era inútil, devido a nossa “simbiose”. Contou-me que iria se casar em breve com um primo extremamente rico, aumentando as riquezas familiares. Nada podia ser feito…

Ao receber essa notícia, o desespero de que fui tomado era enorme. Não era justo!… Mas não era uma questão de justiça. Tudo estava acertado: o primo chegaria em poucos dias, de navio.

Não posso dar-lhes a mínima idéia das noites que vaguei a esmo procurando uma saída, uma luz.

Logo as noites não bastariam para mim. Tranquei completamente as portas e janelas de minha mansão, de modo que nem um raio de luz penetrasse por elas. Minhas pesadas cortinas pretas davam a tudo um ar funesto e horrendo… Os mendigos, à noite, começaram a morrer de maneiras cada vez mais brutais. Eu os matava e imaginava-lhes com o provável rosto do amaldiçoado pretendente. Matava-os em quantidades cada vez mais altas – felizmente, nunca haverá escassez de mendigos.

…O meu ódio era inútil.

Passaram-se muitos dias sem que eu visse Elenida… A tristeza, o medo e o abandono foram pesados demais para mim. Apanhei meu punhal e rasguei nos pulsos profundas feridas: eu queria a morte. O sangue se esvaía rapidamente, mas eu estava ainda lúcido. Caminhei por toda a minha mansão, tingindo as salas de vermelho. Finalmente o frio se abateu sobre mim e eu cai sobre a poça de meu próprio sangue. Com as forças que me restavam, virei meu corpo empalidecido para que a morte não me chegasse pelo afogamento e fitei o teto até que meus olhos se fecharam e a inconsciência tomou conta de mim por completo.

Esse sono não era ainda a morte: acordei horas mais tarde, envolto no abraço e nas lágrimas de Elenida, que vinha dar-me adeus e encontrara-me na agonia da morte… Lembras-te dos beijos que imprimias nos lábios daquele cadáver, ansiando que ele revivesse, Sigfried? Pois foram os beijos de Elenida que me trouxeram à vida.

Com a face banhada em pranto, Elenida perguntou-me por que eu fizera aquilo. Tentei falar, mas faltavam-me forças. Ela aproximou-se de meus lábios e eu balbuciei, gorgolejando sangue: “minha culpa!…”.

Elenida era incrivelmente hábil também com a medicina. Cuidou de meus pulsos com extrema facilidade e tentou me convencer que não era minha culpa.

Mas era! Se eu tivesse falado antes… Ela tinha razão em um ponto: era tarde demais para tudo. O navio que trazia à bordo minha desgraça chegaria em uma semana.

Nos dias que se seguiram eu passei profundamente abatido. Ainda assim, meus ferimentos cicatrizavam rapidamente e pude colocar-me de pé com uma rapidez impressionante… a minha alma estava doente, mas meu corpo ansiava por regenerar-se. Por fim, achei que era hora de desistir: é inútil lutar contra o inevitável.

Era inútil, mas isso não me consolava. Nos dois dias que me restavam, a única coisa que fiz – a única para a qual e ainda tinha forças – foi embriagar-me, taça após taça, garrafa após garrafa, sem parar.

Quando a noite caiu, trazendo consigo um denso nevoeiro, a minha mente de bêbado fez-me levantar e caminhar pela cidade. Tudo parecia confuso; para onde eu iria?

Hoje eu sei, cavalheiros, que Deus não existe; o diabo, entretanto, sempre velará por seus fantoches… creio que foi ele, o diabo, que me deu a idéia de ir até o porto.

Tudo era sombrio naquele cenário horrendo, as águas fumarentas do mar, o nevoeiro, as madeiras apodrecidas pela maresia… Haviam três navios ancorados, Procurei por um que fosse inglês. Foi o primeiro que encontrei. Estava vazio. Já haviam todos desembarcado. Quem eu esperava encontrar? O que eu pretendia fazer? Não sei! talvez eu só quisesse olhar no rosto daquele que me trazia tamanha dor…

A sala foi tomada por um profundo silêncio. Todos olhavam para Giorgio esperando que ele continuasse a história.

– Então, é só isso? – pergunta Archbald, com desprezo.

Giorgio mantém silêncio.

Sigfried estende-lhe um copo – Bebei, italiano… bebei.

Giorgio bebe e deixa o copo tombar vazio sobre a mesa, depois acende um charuto, soltando vagarosamente a fumaça e continua:

Era noite profunda quando resolvi retornar à minha mansão. As ruas estavam ermas e quase nada se podia enxergar. Pareceu-me ter ouvido uma voz que me chamava. Era uma voz de homem.

Voltei-me e reparei num vulto que se aproximava. Uma figura alta, magra e de cabelos ruivos parou ao meu lado.

– Boa noite! – disse ele. Eu não respondi.

– Sabei… acabo de chegar de navio. Não conheço a cidade.

– Navio?… Navio inglês? – perguntei.

– Isso mesmo! – respondeu ele sorrindo.

Comecei a ficar curioso. Seria ele? O estranho continuou a falar:

– Estou viajando há dias. Passei antes em Paris…

– E viestes só?

– Oh, sim! Mas deveria haver pessoas me esperando. Aconteceu de meu navio se adiantar algumas horas. Assim sendo, decidi eu mesmo seguir ao meu destino sem esperar que me viessem buscar.

– Viestes a negócios? – perguntei ainda.

– Acreditas que vim casar-me?

O sorriso que dei foi diabólico; superado apenas por minha gargalhada…

– O que há? – perguntou-me.

Eu respondi, fitando-o sempre:

– Nada… Acho que sei quem és. Ele sorriu.

Então, companheiros, percebeis como é Satã que move todas as peças desse jogo insano? Quem sabe, se eu tivesse seguido por outro caminho, o homem também lá estivesse?… O fato é que tudo ficou instantaneamente claro para mim e uma idéia terrível iluminou meu cérebro.

O homem seguiu meus passos pelas ruas escuras da cidade. De quando em quando perguntava-me se ainda restava uma grande distância. Eu nada respondia e caminhava a sua frente, tentando ocultar o doentio sorriso de minha face. Paramos, finalmente, diante de uma mansão – a minha mansão. Ele ficou estarrecido – o aspecto da mansão era horripilante (imunda e triste). Parado, perguntou-me ainda:

– É aqui?!

Sacudi a cabeça afirmativamente, com um sorriso. Creio que a minha face tinha um ar de loucura: o homem tremeu ao ver minha expressão, meu riso satânico.

Mesmo receoso, ele adentrou a mansão.

É incrível: tudo transcorria como um plano meticulosamente armado; embora não fosse. Tranquei a porta sem que ele percebesse.

– Onde estão todos? – perguntou-me.

– Provavelmente na outra sala. Vou chamá-los – foi a minha resposta.

Quando retornei, com um machado em punho, ele finalmente compreendeu… Sua reação foi um gesto feminil: gritando, correu até a porta que eu havia trancado. Chorava, forçando a porta e tentando arranhar meu pesado mogno negro. O desespero cegou-o: ele nem percebeu quando me aproximei e desferi o golpe fatal. O crânio dele esfacelou-se em mil pedaços e o corpo tombou imediatamente, pesado como chumbo.

Depois, tomei um banho e troquei minhas vestes – não sabeis o quanto são pegajosos os fragmentos de cérebro!

Todos os moços gargalharam; Giorgio continuou, com ar profundo:

Dai para frente fiz o que havia de único que me interessasse: fui ter com Elenida. Chamei-a à sacada, assim como Romeu o fizera à sua Julieta. Ela atendeu-me com a surpresa estampada no olhar. Estava linda: a cascata de cabelos negros se-lhe escorria pelos ombros, a tez branca e os olhos cintilantes… usava uma veste branca, quase como um sudário. Segurei-lhe as mãos e beijei-as como se ali estivesse a minha felicidade. Ela falou-me com tristeza:

– Giorgio, vai-te… breve amanhecerá!

– Não, não! uma vez ainda, peço-te: não me abandones!

– Doido. É já muito tarde… não há alternativas.

– Fujamos! Fujamos para longe!

– Não percebes que tuas súplicas me torturam, que tudo que eu queria era fugir contigo?… E tarde demais…

– Não é tarde: ele não virá.

– O que? Como sabes?

Minha resposta foi um longo silêncio que completei com “ele nunca virá…”. Elenida entendeu.

– Bravo! Bravo, Romeu! Tua história comove-nos. -disse Sigfried aplaudindo.

– Belo final, italiano! Digno de uma bela novela romântica. Por que não nos declama algum soneto, alguns versos escritos ao luar da Itália?

– Basta de pilherias, Archbald! A história não acaba ainda. A desgraça não cessa de existir, a morte não pode ser parada.

– Há ainda mais que contar?

– Sim. Como eu disse, Elenida havia entendido tudo, havia percebido o horror de meu ato; ainda assim, decidiu fugir comigo.

Elenida deu-me a mão e saímos pelas ruas ainda escuras. Finalmente demo-nos conta de que não havia para onde ir.

A decisão veio súbita como a morte: fugiríamos de navio.

Foi fácil penetrar clandestinamente no navio norueguês. Como clandestinos, ninguém nos viu adentrar o porão…

Hoje eu percebo a seqüência de acasos – todos obras de Satã – que arruinaram minha vida e me transformaram nessa triste sombra de ser humano: encontrar o navio, matar meu rival, nossa clandestinidade fácil… se eu tivesse percebido que nada é fácil, que tudo era obra da desgraça e não da sorte, hoje ainda eu teria Elenida a meu lado.

Naquele porão passamos muitas horas de amor. Quando demo-nos conta, estávamos já em alto-mar.

Os três dias que se seguiram foram de um fogo abrasador, de uma paixão intensa. As carícias desse tempo nunca me deixaram a memória: eu a tinha nos braços, e nesse desmaio, eu afagava-lhe a face e pregava-lhe beijos. Quando dormíamos, Elenida dava-me a mão e nosso sono era tranqüilo; quando tínhamos fome, roubávamos o que havia de comestível no porão do navio, nossa sede era aplacada apenas pela embriagues do amor.

Às vezes eu a abraçava e jurava pela minha alma que tudo daria certo. Na verdade eu não sabia.

Ao quarto dia, a fadiga desabou sobre nós pesadamente: o sono veio implacável. Era tudo que nos restava.

Meu despertar veio da forma mais dura possível: acordei sob uma dor intensa… Nós havíamos sido descobertos.

O marinheiro que nos descobrira chutava meu corpo e gritava num idioma que me era ininteligível. Tentei reagir ao espancamento; era inútil… a sede, o cansaço: em poucos minutos eu estava acabado. Sequer pude ver o que era feito de Elenida.

Quando recobrei os sentidos estava rodeado de marinheiros homens horríveis, mutilados. Elenida a meu lado, inconsciente… Dois marinheiros de aparência grotesca seguraram-me pelos braços e forçaram-me a ficar de pé, meus joelhos dobravam-se como os de um ébrio, mas os homens não me deixavam tombar.

Os homens, falando todos a um tempo, a zonzeira de minha desidratação, os murros que eu recebera: tudo isso causou um baralhamento tal em minha mente que eu cria estar sonhando; a realidade parecia-me um rodopiar de imagens confusas.

A confusão dos homens cessou subitamente. Um homem de barba branca aproximou-se de mim – olhava-me nos olhos – de todos ali presentes, parecia ser ele o de menor deformidade: possuía uma profunda cicatriz no olho esquerdo. Segurou-me o cabelo, depois bradou em seu estranho idioma e gargalhou, os homens o seguiram em seu riso infernal. Minha mente principiava já a clarear: tarde demais, o homem tinha um brilho terrível em seu olho. Mais um grito e outros dois homens ergueram o corpo desfalecido de Elenida…

Sabeis, amigos, o que é temer pela única coisa que se ama na vida e nada poder fazer para resguardá-la? O desespero deu-me súbitas forças, debati-me contra as mãos que me prendiam… inútil, tudo inútil… Ah! maldição! Mil vezes maldição! Ainda hoje amaldiçôo o passado.

Esse homem de barba, os outros pareciam respeitá-lo. Bastou uma ordem para que começassem a rasgar as vestes de minha Elenida. Nesse instante eu gritava “não!”.Gritava a plenos pulmões. Gritava com toda a força que este mundo jamais viu… Meus gritos apenas serviram para diverti-los. A cada brado, mais eles a despiam.

Logo estava nua. Aquela forma divinal foi corrompida por todos os bastardos malditos que ali estavam. Minha fúria era descomunal, algo indizível. Para conter-me definitivamente, quebraram meus braços e pernas… Elenida despertou nessa agonia e lançou-me um último olhar, uma última lágrima: seu corpo não resistiu e Elenida morreu.

Ainda morta eles a violentaram por longas horas… eu chorava, assim como tenho chorado até hoje.

Por fim, lançaram seu corpo ao mar. Logo, lançaram-me também, ainda vivo.

Lembro-me do sufocar dos pulmões, das águas que me faziam rodopiar… depois veio a escuridão. Se eu tivesse algum motivo para crer em Deus nessa vida, esse seria o milagre… Mas, não! Até isso foi obra de Satã! Tudo foi um capricho desse maldito jogador!

Despertei na casa de uma família que me havia encontrado numa praia, eu dormia num leito já há cinco dias. Aproveitei-me da generosidade dessa gente pelo tempo que me foi conveniente. Quando percebi que meu corpo reunira já as forças necessárias à minha partida, fui-me embora sem voltar-lhes um adeus sequer. Meu agradecimento foi o instinto do ladrão: roubei-lhes o pouco dinheiro que possuíam, sem vestígio de remorso ou pesar n’alma.

Durante meses vaguei sem rumo pelas ruas da Europa. As lágrimas que não verti no enterro de meus pais foram vertidas à farta por minha amada… Elenida foi-se como se vão todos os anjos, todos os sonhos. Acho que é essa a melhor definição: Elenida era um sonho.

Um sonho maravilhoso o qual poeta algum pôde conceber. Entretanto, até os sonhos são capazes de afligir a alma de quem os sonha. Elenida era assim: um sonho que termina e deixa na alma nada além do vazio e o desconsolo do despertar.

Se a semente da morte de meu amor fez brotar na minha alma uma tristeza que seria infinita, trouxe também um fruto, um fruto que eu cultivaria no âmago de meu ser, certa noite eu cerrei os punhos e bradei ao vento que uivava: “vingança!”. “vingança e morte!!!”. Daí para frente, vingança seria minha vida…

Sabeis o que é viver em obsessão? Sabeis o que é ver diante de si, a qualquer hora do dia ou da noite, a figura de umhomem com a face rasgada? Sabeis o que é não dormir e sentir na boca o gosto do sangue de seu inimigo? Meus sonhos eram sempre os mesmos: o homem gargalhando, Elenida morre, depois eu o mato. Todas as vezes eu lutava com todas as minhas forças, mas, vez após vez, Elenida sempre morria… sempre era tarde demais…

Passaram-se cinco anos.

Com meu intelecto foi fácil erguer nova fortuna. Vali-me de meu dinheiro para conseguir informações sobre o navio norueguês – nada eu havia conseguido ainda. Aprendi com perfeição o idioma que os marinheiros falavam naquele fatídico dia em que Elenida morreu e levou consigo o pouco que eu tinha de humano e belo.

Em pouco tempo a minha riqueza assumiu um vulto espantoso. Mas cada cobre, cada grama de ouro, cada momento de minha vida e cada pensamento de meu cérebro convergiam apenas para um ponto: vingança. Percorri toda a Europa, não uma, mas várias vezes, à procura de uma mísera informação sequer, certo dia, um homem imundo veio à minha procura. Estava roto e fétido.

– É o senhor que procura o navio do homem com a cicatriz?

– Sou eu. O que queres?

– Ora, ora! Tem um tom assaz arrogante, moço! És muito indelicado.

O vadio tinha um tom arrogante não sabia, certamente, com quem brincava; entretanto parecia ter a informação que eu procurara por cinco anos. Ele sorria, confiante, com os poucos dentes que lhe restavam ainda na boca. Como me convinha, fui paciente.

– Conheces o homem? – perguntei.

– Por minhas tripas! Leve-me o diabo se não o conhecer!

– Então, desgraçado, falai! Falai!

O homem sorriu maliciosamente. Eu compreendi.

– Ah! a recompensa!… O que queres?

Ele fez uma longa pausa, as moscas o rodeavam. Finalmente decidiu-se:

– Quero o seu melhor vinho!

Eu não podia crer:

– O que?!

– Disse que quero o seu melhor vinho, bastardo de Satã! Traga-mo!

Cri que o homem fosse louco; mas trouxe a garrafa de meu vinho mais caro. Percebi que ele não era louco quando olhei em seus olhos de viciado, sempre fitos na garrafa que eu segurava. Eu quase não havia demorado em trazê-la, mas o mendigo parecia transtornado.

– Ei-la aqui. Mas não espere recebê-la ainda!

– És muito desconfiado, moço!…

– Ao diabo! Falai de uma vez, ou eu te mato!

Ele começou a falar:

– Conheci-o numa taverna, na mesa de jogo. Ganhei a partida, mas minha recompensa foi perder meus dentes… Vim-me embora da cidade e espero nunca mais lá retornar… Maldita seja Londres.

– Isso foi há quantos dias, mendigo?

– Foi há uns bons três meses. não é fácil vir de Londres até aqui praticamente com a força de minhas pernas!

Saquei meu punhal:

– Basta dessa pilhéria imunda! – bradei.

– Qual pilhéria que nada! Lá ele reside e lá ele tem uma filha… Agora o meu vinho.

– Teu vinho? Oh, sim.

Dei-lhe a garrafa. Ele a abraçou como se a amasse e saiu. Pouco depois o homem estava morto à minha calçada: fora veneno. O meu veneno

Nessa mesma noite segui viagem à Inglaterra.

A enorme vingança que eu planejara fez com que minha viagem durasse apenas três dias. Londres me era familiar, por minhas andanças eu a percorrera incontáveis vezes. Foi fácil encontrar meu destino: uma bela casa – na verdade uma mansão, onde o maldito deveria morar. Pensei invadi-la, degolá-lo; mas, não sei porque, simplesmente bati à porta. Alguém abriu: era ele, as barbas brancas, a profunda cicatriz.

Ficamos de pé, um diante do outro – a atonia fez-me mudo – ele olhava-me profundamente, como se me reconhecesse. Ele quebrou o silêncio:

– Pois não?

Silêncio.

– Pois não? – repetiu.

Ah, como eu queria matá-lo! Como eu queria arrancar seu coração!… O infeliz nem se lembrava mais. Não recordava o meu rosto, o rosto da vida que ele desgraçou… Eu nunca poderei esquecer por um segundo ao menos. Sofreei a raiva a custo: expliquei que era um viajante – rico – e que não tinha onde passar a noite. Pedi para ficar: ele deixou. Eu sorri porque sabia que ele havia deixado a morte adentrar a própria casa.

Deitado num leito eu fantasiava mil maneiras de matá-lo; nenhuma era cruel o bastante…

Levantei-me antes dos primeiros raios da manhã: eu sentia uma fúria que borbulhava no sangue, um ímpeto assassino. Minha inquietação fez com que eu caminhasse pela casa, vasculhando-a quem sabe, procurando uma evidência de que a morte da pessoa que eu mais amava, ao menos causara naquele homem uma seqüela: nada. Haviam nas paredes uns quadros bizarros, cenas apocalípticas, carnificinas; um, entretanto, contrapunha-se às outras cenas: era uma mulher, um anjo puro e luminoso que irradiava beleza. Essa pintura, em especial, fascinou-me enormemente. Era assim comigo: Elenida era o meu anjo num mundo de atitudes bizarras. Passei horas, absorto.

Uma voz masculina despertou-me:

– Gostas?

Era ele.

– Sim. – respondi.

– Ah! São apenas as extravagâncias de um velho!

– E quanto a este? – apontei-lhe o retrato do anjo. O maldito sorriu-me:

– Este é um mimo à minha filha. Ela achou horríveis estes outros e trouxe-me o anjo, para atenuar, creio.

Eu não tirava os olhos dele.

– Oh! O vosso nome, moço? Não o perguntei?

– Não… Mas tu me conheces. meu escárnio era grande.

O velho fitou-me mais profundamente… por um instante pareceu lembrar-se:

– Você é… – uma voz interrompeu-o: – Papai? é o senhor? -disse a voz… Uma jovem encantadora adentrou a sala. Abraçou e beijou o velho, carinhosamente.

– Já vistes minha filha, senhor…?

– Giorgio.

– Eu sou Balzac. Esta é a minha flor, o meu sol: minha filha Angélica.

O velho tinha razão nas comparações à sua filha: ela era linda. Longos cabelos louros completavam com os olhos verdes e os lábios aquela irreal e perfeita visão. A dama saudou-me e chamou-nos ao café.

Ainda nesse dia propus ao velho que me deixasse ficar mais uns dias. Pelo preço certo ele aceitou.

À noite, tudo era silêncio. Com facilidade integrei-me à rotina da casa. Numa dessas noites, escondi-me no quarto do velho. O cortinado ocultou minha presença… Logo ele estava dormindo um profundo sono. Tirei do seio um frasquinho que trazia escondido, aproximei-o a aos lábios do velho e verti-lhe algumas gotas, que ele absorveu sem senti-las. Logo seu sono era profundíssimo devido ao narcótico. Até que amanhecesse, velei naquele quarto sombrio.

Ao acordar, algumas horas depois, o velho disse-me que sonhara. Sonhara que morria e que Satã velava em seu túmulo… Eu era Satã.

Noite após noite eu dopava o velho e velava a seu leito como um demônio vela por sua presa. Cada vez mais, os pesadelos que o assolavam eram horrendos. Eu me deleitava em vê-lo se debater no leito, sendo devorado pelos fantasmas de seu próprio inconsciente.

Durante o dia, eu cuidava em dissimular uma face sorridente. Dois meses passaram.

Se nesses dois meses eu dissimulei tudo, uma coisa era real: a afeição de Angélica. Ela abraçava-me, lia-me poemas… às vezes convidava-me para dançar, quando eu não aceitava, tomava-me à força pelo braço e obrigava-me a sorrir enquanto dançava… Como ela era alegre! Como irradiava vida!

O velho criou por mim um carinho paterno e sincero. Quando a noite chegava eu agora velava pelos dois quartos: o velho que se atormentava nos sonhos e Angélica, que eu vigiava num sono tranqüilo e feliz.

– Estavas apaixonado pela moça, Giorgio?

– Não creio que fosse paixão, Sigfried. Era ternura! Angélica realmente era como um sol: fazia tudo brilhar, tudo ter vida. Era belo vê-la dormindo seminua no sono da inocência, coberta apenas por um tênue véu. Era fascínio. Ela era como a pintura que tanto gostava:

eu não podia amar pinturas.

Certa noite deparei-me com Angélica num escuro corredor da casa – estava misteriosa -. Eu ia falar-lhe, mas com o dedo indicador diante dos lábios pediu que fizesse silêncio. Obedeci. Subitamente Angélica roubou-me um beijo e disse que me amava, depois se foi, sorrindo.

No outro dia o velho chamou-me a passear:

– Giorgio… Sabei, filho, em muito me agradaria que se casasses com minha Angélica! …

Isso muito me abalou… Talvez eu pudesse ser feliz ao lado de Angélica. Disse que precisava pensar. O velho pôs a mão em meu ombro e sorriu; eu sai.

Uma hora depois, enviei ao velho um bilhete: eu tinha já a resposta e queria encontrá-lo numa velha casa que eu comprara ali por perto.

Não demorou para que ele chegasse. Adentrou a casa, chamou-me; não respondi. Quando ele aproximou-se mais de um ponto onde a treva era imensa, atingi-o violentamente e ele caiu, inconsciente.

Ao recuperar a consciência o velho viu-se preso por correntes à parede. eu estava sentado a sua frente.

– Giorgio? O que significa isso?

– Isso, velho, é vingança.

– Estás louco? Solte-me!

Eu sorri…

– Vingança?… falais em vingança. Vingança de que?

– Então, não sabes? Não me reconheces? Olhai mais de perto! – aproximei-me.

– Doido!!!

– Não te lembras? Eu sou o clandestino que jogastes ao mar para morrer há cinco anos! Lembras-te da minha noiva?

O homem tremia, estava gélido de pavor.

– Não é possível!

– Sim, velho, é possível! Foi Satã quem o quis!

– Isso é passado… eu não quis… não sou mais um pirata!

– A vingança é eterna como a morte, velho, você vai pagar!

– Piedade!

– Piedade? E teve você piedade da virgem que morria? Teve você dó de me tirar tudo que eu tinha de caro e me matar… Eu morri. Mas os cadáveres têm sorte, porque descansam; eu ainda estou aqui.

O bastardo lamentou e chorou… embalde. Finalmente foi tomado por um súbito assesso de dignidade:

– Então mate-me de uma vez, traidor!

Eu gargalhei:

– Ha! ha! ha! Matar-te é pouco!

Fiz, então, silêncio absoluto, como se fechasse meus olhos e ouvidos às súplicas e lágrimas daquele homem que, em seu tempo, jamais havia de ter chorado ou suplicado por motivo algum.

Logo ele percebeu que eram inúteis os seus esforços e deixou-se estar, abatido e subjugado pelos elos das pesadas correntes que o prendiam. Eu o observava com o mais sombrio ar, da mais terrível penumbra… sempre em silêncio…

Passou-se uma hora.

Súbito, uma doce voz chamou-me pelo nome: era Angélica. O velho teve um semblante de terror tão profundo que igual eu só vira uma vez na vida, em Elenida. Tapei-lhe a boca para que ele não alertasse a filha e chamei-a… Ela veio sorrindo ao meu encontro; então parou, petrificada pelo choque da cena.

A inocência de Angélica, seu amor por mim, tudo isso fez com que aquele anjo não entendesse ou não pudesse entender o que se passava. Ela olhava para mim e olhava para o pai, acorrentado e chorando…

Ah, amigos!… Não sabeis quanta dor me causa essa história! Dêem-me vinho para que eu possa prosseguir.

Giorgio bebeu e continuou:

Como eu dizia, a confusão da jovem era imensa.

– Giorgio… o que se passa? – perguntou-me com uma voz infinitamente cândida.

O velho não me deixou responder:

– Fuja! Fuja! – bradou desesperado.

Sem saber o que fazer, Angélica pareceu-me que ia entrar em pânico: devia ser grande o caos em sua mente. Ela não sabia o que fazer, o que pensar… Nesse frenesi eu estendi-lhe as mãos. Ela segurou-as confiantemente e fitou em mim seus brilhantes olhos de esmeralda.

Ah, como eu quis acalentá-la! Como eu quis beijar as pequenas e suaves mãos daquele anjo tão alegre e sensível… Mas, não! Nesse momento eu segui o caminho que Satã me traçara: endureci meu coração a tudo que me restasse de humano. Segurei com mais firmeza as mãos de Angélica, apertei-as, cada vez mais forte… cada vez mais… Ela, não suportando, ajoelhou-se a meus pés.

Nesse instante, amigos, eu quis ver; mas minhas lágrimas não me permitiam…

O velho parecia louco: implorava, forçava as correntes, gritava… Tudo embalde… Eu estava cego.

Depois, fiz em mil pedaços as vestes daquele anjo que tremia de pavor: violentei-a. Violentei-a, mas não pude resistir ao meu ato. Foi por compaixão, quase amor, que eu terminei com o sofrer daquela criatura da inocência: degolei-a e ela morreu sem quase sentir…

Tanto tempo eu chorei sobre o cadáver de Angélica, que pareceu-me esquecer, por um segundo, a vingança… logo Satã reavivaria a minha memória.

Aproximei-me do velho, olhei bem fundo em seu único olho bom e balbuciei: “vingança…”.

Ele não queria morrer, mas as correntes o prendiam bem. Saquei meu punhal, já manchado pelo sangue da pureza, e cortei-lhe os dois pulsos… Era o fim: de início, ele gritava e debatia-se, depois, de pouco em pouco, a voz foi cessando, os movimentos foram tornando-se menos bruscos… finalmente silenciou-se.

Permaneci ali até a última batida de seu coração.

Fugi de Londres e prometi jamais retornar; entretanto, um ano depois dessa desgraça, retornei e mandei erguer à Angélica o mais belo e imponente jazigo da Inglaterra… Nele, velam dois anjos que eu amei.

– Bravo! Brevíssimo, italiano! Tua história é triste como a agonia e bela como a morte! – aplaudiu Sigfried. Contudo, escapa-me um detalhe: dissestes que uma doce voz te havia chamado. Como a bela Angélica chegou a ti, se era um segredo o local que escolhestes para tua vingança?

– Insistis nisso? Deixai que o passado descanse novamente no túmulo do esquecimento…

– Deixai que eu responda por ti, Giorgio! O italiano enviara, também, um segundo bilhete para a donzela. Pagou os serviços do mensageiro, pagou o segredo e cumpriu seu negro destino.

– Como sabes disso, L’Estat’?!

– Também eu fui a Londres e fascinado pela beleza de um jazigo esplêndido, perguntei a quem ele pertencia… Contaram-me então, a lenda de um italiano assassino e a tragédia dos anjos que morreram.

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