E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza,
Nem possa ver-te, musa da beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;
MACHADO DE ASSIS
Todos os dias ao final da tarde, quando regressava do trabalho, a minha mente exausta realizava um ritual compulsório. Enquanto a maioria dos homens toma um conhaque ou lê um livro eu mergulhava em contemplação e reflexão. De pé sobre uma estreita cadeira, sob a luz do sol vermelho que permeava as minhas persianas, fitava hipnotizado a longa corda que, pendurada numa das vigas do teto, balançava o nó corrediço diante do meu rosto.
Poderia passar assim, de pé sobre a cadeira, apenas alguns minutos, bem como longas horas. Do alto daqueles poucos centímetros contemplava minha vida com tristeza: a imutabilidade de realizar o mesmo trabalho monótono durante trinta anos e constatar desesperançoso que o futuro seria apenas uma repetição cansativa do presente.
De tal forma a minha vida era tediosa que mesmo acabar com este sofrimento era tarefa complicada. Se alguma emoção, se a mais simples brisa soprasse na direção da morte, eu saltaria com prazer naquele pequeno abismo que minha cadeira representava e na libertação que a corda de cânhamo traria, mas minha alma estava oca. Dia após dia eu estava a contemplar qualquer evidência lógica de que morrer – ou viver – seria a melhor decisão, mas jamais obtivera resposta.
Tudo que me restava era afundar no sofá acompanhando o tique-taque rítmico do relógio e rezar para que amanhã alguma iluminação súbita trouxesse a resposta.
Quando chegava um novo dia, não havia esperança: esta ingenuidade murchara como uma planta que não recebe água. Percorria um pequeno trajeto, de cerca de quinze minutos a pé, de minha casa até a repartição pública que estava sediada num prédio antigo – uma casa grande alugada pelo governo – cujos fundos levavam a um rio barrento que eu gostava de observar enquanto fazia as pausas para fumar. A casa em si era feia, repleta de ângulos agudos, janelas emperradas e mofo. Um dos cômodos de trás ainda permanecia abandonado, repleto de caixas de madeira e grandes pedaços de pano preto. O trabalho que me esperava – e que realizava há trinta anos – consistia em catalogar e dar destino a centenas de fichas e novos funcionários públicos que o Estado contratara.
Passavam centenas, milhares de nomes, direcionados para dezenas de setores em pilhas de papel que cresciam sobre as mesas.
No setor, outros cinco funcionários realizavam a mesma função que eu. Sequer me cabe citar seus nomes; afinal, que me constasse, embora dividíssemos o mesmo espaço, éramos todos invisíveis, todos etéreos, todos mudos e o dia se arrastava assim, entre as batidas tediosas de um carimbo e olhar, pela porta aberta, qualquer brisa eventual que levava as folhas soltas para longe e que fazia dançar os galhos das árvores.
Um dia, porém, enquanto carimbava uma nova remessa de papéis, algo me despertou a atenção, um nome: Jasmine LeBlanc e eu realmente acredito que foi a Providência quem manipulou toda uma enorme cadeia de eventos para que meus olhos entediados vissem justamente este nome sobre a pilha de papéis que eu carimbava apressado; isto porque eu não via nomes, nem pessoas que estes representavam, via somente papéis a receber o brasão azul impresso em tinta. Fora um milagre que eu visse o nome, Jasmine LeBlanc, e fora um milagre o que se operou dentro de mim.
De certa forma que, quem me dera tivesse palavras para explicar, este nome me comoveu. É como se algo no som produzido pelas sílabas ecoasse no meu cérebro e iniciasse uma cascata de sentimentos que jamais sentira. Esse nome significava algo e, semelhante a uma música que não se consegue parar de assoviar ou a um ponto fixo ao qual os olhos não podem resistir, percebi que crescia a sensação de que ali havia algo, algo maravilhoso, acontecendo.
Peguei a ficha e li com atenção: Jasmine LeBlanc, vinte e oito anos, solteira, matrícula 2230, a começar os trabalhos daqui a exatamente um mês e lotada no mesmo setor que eu. Nesses trinta anos, tal notícia de receber um novo colega de trabalho me aborreceria, mas, nesse caso senti uma estranha felicidade, bem sutil, que, timidamente, me fez recostar na cadeira e refletir:
– Que estranha coincidência… – e sorri – Coincidência ou Providência.
O que acontecera a partir daí foi um tipo de metamorfoseamento das minhas agruras e dos corvos que me pairavam pelo cérebro como enxames o dia inteiro. Daqui a um mês, quando Jasmine chegasse, quem sabe, algo de bom aconteceria na minha vida estéril. Esta sensação que o nome despertara em mim agiu como o ressoar de um sino: – Jasmine! – e o som permanecera ecoando alto e forte, reverberando sem parar, alimentando-se.
Não quero parecer ridículo, mas, na dificuldade de explicar melhor, farei uma analogia. Imagina-se que uma pessoa viva perdida e triste pelos mares da vida, sem esperanças, sem sentido, e um dia alguém lhe fala sobre a bondade de Jesus Cristo, de Seu amor e que tudo isso, toda essa bondade e amor façam o mais forte sentido, mesmo sem provas materiais, mesmo sem evidências científicas, apenas pela fé e que essa fé muda tudo. Isso basta e tudo, de súbito, muda. Assim era comigo: eu sabia, eu simplesmente sabia, que Jasmine seria importante na minha vida, que ela mudaria tudo.
As horas de trabalho passaram rápido e quando cheguei em casa observei com desgosto o que meu lar havia se tornado: um ambiente escuro onde eu mal permitia que a luz entrasse, carente de mobília, frio, sem plantas ou qualquer outra forma de vida que, como dizem, alegra o ambiente. A pequena cadeira, ainda posicionada diante da corda que pendia do teto e se deixava embalar tranquilamente ao sabor da mais leve corrente de ar.
Pela primeira vez em muitos anos abri as janelas todas, todas as cortinas, e um banho de luz esterilizante varreu as sombras imediatamente. Subi na minha “cadeira de suicídio” e joguei por cima da viga a corda que pendia, desamarrei-a e a vi, depois de tanto tempo viva e sedutora, balouçante ao ar, caída como uma serpente, em rolos, pelo chão, exalando seus últimos suspiros.
Não sei se me passava pela cabeça que, de alguma forma, Jasmine representava a minha libertação, minhas atitudes evidenciam que sim, era isso que eu pensava, mas também havia muita expectativa e eu rezava fervorosamente para que a minha “intuição” não estivesse errada porque, sim, admito-o, eu me afogara em solidão mas ansiava amar.
Lembrei-me de algo e dirigi-me ao quarto, onde tirei, debaixo de uma tonelada de papéis desordenados, o velho crucifixo ao qual abdicara e pendurei-o na parede da sala.
Depois de algumas pequenas tarefas, mais uma vez, recostei-me no sofá onde contava os minutos até que a morte chegasse e olhei o relógio na parede, com seu tique-taque incansável e, depois, sem mover o pescoço voltei os olhos ao crucifixo. Dessa vez eu já não esperava a morte, que viria selar meu destino num dia qualquer, sem aviso; agora eu esperava que meu destino fosse selado, mas com data marcada: daqui a um mês. Daqui a um mês eu estaria amando e como isso mudaria a minha vida?
Era fácil conjecturar… Quando Jasmine chegasse, também sentiria essa estranha ligação que eu agora sinto, mas, tímida, enrubesceria e permaneceria calada. Eu poderia ver nos seus olhos que ela compreenderia a mágica ligação entre nós. Ela, olhando, por sua vez nos meus olhos, compreenderia, também.
Caberia a mim, como homem, usar todo meu empenho para que, de modo a não ferir o seu recato feminino, levasse nossas vidas a convergir… Mas isso seria fácil porque o destino conspirara a nosso favor, pusera-nos juntos sob a mesma repartição, de certo, com o propósito firme de que nos unamos e o que seria eu se permitisse que essa oportunidade – que Deus criara para mim – passasse?
Não! Sequer poderia pensar nessa possibilidade. Que miserável eu seria se desapontasse o próprio Deus e não agisse no momento em que Ele desejava que eu agisse.
Uma coisa era certa – e isso jurei fazendo o sinal da cruz e cerrando os punhos – tudo, absolutamente tudo que me coubesse para que o propósito de Deus se cumprisse eu faria.
Minha cabeça borbulhava de pensamentos e meus ombros tremiam sob o peso esmagador da responsabilidade. Havia tanto a se perder e tanto a se ganhar, mas fazia-se tarde e, embora o tempo passasse muito depressa enquanto me perdia em diversas linhas de pensamento, adormeci.
Meus sonhos, geralmente, são mudos e negros como o breu, passa-se a noite inteira como num piscar de olhos e sou incapaz de lembrar de qualquer sonho. É como se morresse ao dormir e despertasse para a vida com o nascer de um novo dia.
Ao abrir os olhos, lembro-me bem, o primeiro pensamento que tive foi “faltam, agora, vinte e nove dias”.
Na repartição, para minha sorte, o trabalho que eu executava era monótono e maquinal o suficiente para ser executado enquanto o cérebro viajava ao fumarento mundo dos devaneios. Embora eu não tivesse muitas informações para inferir como seria a aparência de Jasmine, a partir do nome é possível traçar algumas possibilidades. O nome remetia à flor, jasmim, que é delicada e branca, de aroma suave e romântico. E que região do mundo deu origem ao belo jasmim? Onde mais, senão no misterioso oriente, cenário de tantas histórias maravilhosas que eu lera quando jovem.
Se Jasmine fosse, como a flor, delicada e descendente daquela região mágica, já podia antevê-la com os cabelos negros cacheados, os grandes olhos, muito negros e refletivos como espelhos, a pele com uma atrevida cor morena bem suave e uma voz profunda, como se soubesse todos os mistérios da vida. Seu rosto seria ornado pelo nariz aquilino dos árabes e pelos lábios vermelhos, tal qual os de Xerazade nas Mil e uma Noites.
O sobrenome LeBlanc, por outro lado, remete à França. Quem sabe Jasmine fosse, em vez de uma flor da pérsia, a descendente de alguma distinta linhagem francesa que, pela decadência dos nossos dias, perdera tudo e hoje em dia vivia entre os comuns. Tanto melhor, pois isso significava que tinha cultura, que trazia no próprio sangue a distinção de gerações de nobres. Se assim fosse, seria de constituição delgada, alta, com um andar de pluma e os cabelos negríssimos, muito lisos e brilhantes. A pele, branca como o mármore, faria jus ao sobrenome “LeBlanc”.
Pensar nisso, é claro, desfraldava diante de mim um tapete infinito de possibilidades, afinal, apesar da análise lógica do nome remeter às imagens que citei, Jasmine poderia ser simplesmente diferente, talvez ruiva, com os cabelos longos e encaracolados como chamas da Irlanda, talvez loira e meiga, transbordante da singeleza inglesa.
Era divertido passar as horas devaneando sobre possibilidades de rostos, de lábios, de olhos… todos estes me encantavam e a cada nova combinação, mais crescia em mim a certeza de que eu amaria Jasmine, quer fosse ela como as fortes mulheres do sul quer fosse delicada como as mulheres do norte.
Quando me cansava do meu universo imaginativo, dirigia-me para os fundos da repartição e acendia um cigarro, debruçava-me e observava o rio que, como já disse, corria pelos fundos. Ficava absorto nas águas barrentas, profundas e revoltas que, às vezes, pareciam rugir com violência, arrastando um galho ou a carcaça de um bicho infeliz que se afogara. Ao fim do cigarro, atirava no rio, com um estalar dos dedos, o que sobrara do filtro semicarbonizado e sentava-me novamente na minha cadeira, retomando os pensamentos: seria loira, ou, muito mais provável, teria os cabelos e olhos castanhos como o mel, no mesmo estilo das belas mulheres de Portugal, da Espanha, da Itália ou da Grécia?
A verdade é que – direi, para minha vergonha – que conforme passaram os dias, mais que uma vez os colegas de repartição observaram-me, inadvertidamente, a suspirar sobre o papel onde eu, pela primeira vez, soube da existência de Jasmine LeBlanc.
Estava evidente que eu havia mudado de alguma forma, tão evidente que à minha volta os cônvivas de trabalho percebiam e tratavam com pilhéria o fato de que eu estava inegavelmente apegado a uma mulher que eu sequer vira.
– Lá vai ele suspirando em cima de um pedaço de papel novamente! – diziam, enquanto eu me pegava, pela milésima vez, relendo devotamente a ficha à qual aplicara o carimbo.
Mas eu, diante desse gracejo, estava forte e percebia na pilhéria um tipo de confirmação pública de que eu, sim, de fato, amava Jasmine. Que importa se eu jamais havia visto a mulher que o pedaço de papel representava? Dentro de poucos dias a troça daria lugar ao espanto, quando constatassem que eu tinha razão, que o sentimento que me inflava o peito era como uma premonição divina e que, de fato, Jasmine e eu estávamos destinados a ficarmos juntos.
Enquanto os dias passavam, eu me resignava, mesmo sabendo que me tornara motivo de piada, resignara-me porque já saboreava por antecedência a doce vingança de saber que eu estava certo, que quando Jasmine chegasse o mundo engoliria suas palavras de escárnio e murcharia, arrependido.
Os dias passaram lentamente, aumentando em proporção geométrica a minha ansiedade. Faltavam vinte dias! Faltavam quinze dias! Faltavam dez dias! Eu, na verdade, contava os segundos, e quanto mais eu contava, mais o tempo parecia se dilatar. Um dia parecia conter mil anos e os segundos pareciam ser compostos de horas.
Ao faltarem cinco dias para a chegada de Jasmine, entrei em transe; já não conseguia mais trabalhar e meu sofrimento era imenso. A angústia chegara a tal ponto que olhar ao relógio e pensar que ainda faltavam dias revoltava-me o estômago e tomava-me o ar.
Na véspera, um sentimento parecido com a insanidade completa tomou conta de mim. Eu via nas paredes, nos quadros, nas sombras, diversas formas de mulher que se metamorfoseavam, ora loiras, ora morenas, ora ruivas, ora alegres e ora tristes, mas, todas elas, certamente eram Jasmine.
O meu cérebro já havia combinado tantas possibilidades, tantos rostos, tantas histórias, tantos trejeitos que, não importando como Jasmine fosse, ela certamente preencheria o meu universo de possibilidades de alguma maneira, certamente seria parecida com uma dessas mulheres que ideara nos meus devaneios e como de antemão eu já as amava todas, era certo que amaria Jasmine.
Estranhamente, quando o dia chegou, acordei calmo. O espírito serenara, talvez para evitar que eu entrasse numa condição de loucura definitiva e irreversível – o real motivo, jamais saberei. Tudo o que importa é que no dia tão aguardado, embora eu esperasse acordar com o coração explodindo no peito, levantei-me amparado pela certeza de que minha vida mudara, arrumei-me com esmero e olhei, com satisfação, no espelho que, apesar de meus cinquenta anos, ainda tinha os cabelos negros e apenas um tom acinzentado muito suave começava a me surgir nas têmporas.
Parti à repartição o mais rápido que pude, percorrendo o trajeto de quinze minutos em não mais que dez, desalinhando o terno que tanto cuidado me tomara.
Para meu espanto, quando cheguei, uma fila enorme de pessoas se tumultuava em frente ao meu setor.
– Que tolo eu fui! – pensei – Como pude me esquecer de que, além de Jasmine, centenas de outras pessoas são admitidas e devem ser enviadas aos seus respectivos locais de trabalho!?
Isso é o que acontece quando um homem perde a perspectiva do todo: quase cego eu carimbara centenas de papéis, mas apenas tinha atenções para um, o que me apresentara Jasmine. Inadvertidamente me esquecera de que todos os anos, centenas de pessoas, em sua maioria odiosas, se aglomeram frente à minha porta aguardando os papéis carimbados que lhes autoriza seguirem aos respectivos setores.
Eu era obrigado a cumprir essa tarefa, amarrado pelos grilhões do ofício. Não adiantava aguçar os olhos e tentar reconhecer Jasmine no meio da multidão: era um mar de pessoas que se agitava e entrava em bandos na minha pequena sala, dirigindo-se à minha mesa.
Com desgosto comecei a atender as pessoas que chegavam. Tinha uma voz monocórdia, um ar de enfado no rosto: era visível meu desprazer, de tal modo que eu evitava olhar nos rostos.
– Nome? – perguntava eu. As pessoas respondiam e eu, mecanicamente, procurava na pilha de papéis, organizados alfabeticamente.
Se alguém tentava iniciar alguma conversação sem sentido sobre o clima ou sobre a agitação do ambiente, eu apenas me abstinha em responder. Depois de algumas horas e de dezenas de pessoas, ao atendê-los, eu sequer erguia a face. Perguntava-lhes os nomes entre os dentes, como se rosnasse, entregava-lhes o papel carimbado, que arrancava da montanha em minha mesa e, antes que dissessem qualquer palavra, já vociferava: – O Próximo!
– Nome? – perguntei ao próximo. E uma voz baixa e rouca respondeu:
– Jasmine LeBlanc.
Estremeci. Senti como se um pulso elétrico me subisse dos pés à cabeça e diante do nome permaneci imóvel, a cabeça ainda baixa, os olhos, abertos ao máximo. Uma gota de suor, imediatamente, me escorreu pelo canto esquerdo da face.
Ainda tremente, ergui a cabeça e a vi, pela primeira vez, diante de mim, a mulher que eu tanto esperara.
Usava um vestido azul desalinhado e decotado. O decote permitia ver as costelas salientes, como uma jaula de gravetos quebradiços onde flutuava uma pequena cruz presa por cordão prateado. O pescoço, fino e longo, evidenciava grandes artérias azuis, que pulsavam, e o rosto, de formato quadrado, tinha um queixo que se projetava para frente, enquanto a pirâmide nasal, achatada na parte de baixo, emitia um ruído que se podia escutar enquanto cada golfada de ar era engolida. Os olhos, castanhos e piedosos, eram embaçados como olhos de vidro, os cabelos, desalinhados, eram cor de terra e longos. Jasmine sorria com os dentes amarelos e me olhava fixamente.
Chocado e aterrorizado, entreguei, lentamente, o papel carimbado para Jasmine, ela, estendendo-me a mão cadavérica e cérea tomou o papel, deixando que seu dedo indicador, inadvertidamente, me tocasse. O dedo era gélido, áspero, com grandes articulações protuberantes.
– Você está bem? – perguntou-me ela – Parece pálido!
Num triste gesto de compaixão, Jasmine tentou tocar-me o ombro, gesto esse ao qual me desvencilhei com repulsa.
– Não estou bem e vou-me embora! – falei, levantando-me bruscamente e saindo da sala.
Ainda dezenas de pessoas aguardavam do lado de fora, mas isso não me interessava. Passei, impassível, pela fila de gente como se fossem invisíveis e, com as mãos nos bolsos e os punhos cerrados, dialogava comigo mesmo:
– Um monstro! Meu Deus, aquela mulher é um monstro! Como isso pode acontecer, como?
Ao chegar a casa, tudo me parecia mais lúgubre, as sombras dos cantos pareciam mais negras, o Cristo na parede parecia sorrir de escárnio.
Com um grito, arranquei da parede a cruz e a fiz em pedaços no chão, depois desmaiei.
Permaneci inconsciente por longas horas, não saberia dizer ao certo quanto tempo, mas quando voltei a mim, já se havia passado um dia inteiro e esse sono pesado que me acometera deve ter sido um sono convulsivo, repleto de pesadelos e horrores, pois, à minha volta, havia móveis revirados, papéis desorganizados e vidros despedaçados. Um suor amargo me banhava.
Mesmo assim, cambaleante, ergui-me, passei as mãos pelos cabelos ensopados e voltei à repartição. Ainda era bem cedo, mal surgiram as primeiras luzes da manhã e ainda era possível ver, no horizonte distante, um resquício da noite que se afastava. Quando já bem perto da repartição, observei algumas luzes acesas.
Tudo era confuso em minha mente; não estava certo se, de fato, havia abandonado minha cadeira e corrido para casa, se desmaiara, se dormira ou se a Jasmine que minha memória desenhava era realmente aquela figura hedionda.
Para meu maior horror, entretanto, ao adentrar a sala, lá estava ela: Jasmine organizava papéis distraidamente, com os ossos estalando e, encurvada para verificar os arquivos, permitia que se desenhasse pela seda do vestido, cada uma das vértebras de sua coluna.
Não pude abafar um pequeno grito feminil: a imagem me recordava por demais uma das harpias que haviam de ter atacado Jasão e os argonautas na mitologia grega. Vindo em minha direção, ela me estendeu as garras:
– Bom dia! Sente-se melhor?
Afastando-me e evitando o toque, respondi com a voz enfraquecida:
– Sim… sim… algo melhor…
Ironicamente, mais uma vez, os dias se arrastavam, mas dessa vez porque eu não suportava o asco que me causava a presença de Jasmine. Para onde quer que eu desviasse o olhar, sua horrenda e cadavérica figura aparecia em meu campo de visão. Assombrava-me também em casa, não apenas a sua palidez de mármore ou sua respiração pesada encrustadas na minha mente, mas a vergonha esmagadora de tê-la amado, sinceramente amado e ver meus sonhos transfigurados numa carcaça ambulante.
Passou-se uma semana nessa agonia, o meu espírito estava exausto. Jasmine era a primeira a chegar à repartição, por isso eu não tinha sequer um instante livre de sua presença. Passava o tempo cabisbaixo e a medo de que, quando erguesse o olhar, deparasse-me com a imagem tétrica de cadáver fito em mim.
Mesmo sem olhar, eu podia ouvi-la (assim como aos risos dos meus colegas de trabalho): seus passos se arrastando pela sala, sua respiração passando pelas minhas costas enquanto levava ou trazia algum calhamaço de papel e eu, todos os dias, passava as horas na repartição com os olhos cravados na mesa e a cabeça entre as mãos, absorvido no pesadelo que minha vida se tornara.
Não consigo dar ideia exata da perturbação cruel pela qual eu passava… se alguma vez tomava coragem de abrir os olhos, era somente para vê-la se arrastando pelo ambiente, bem devagar, caminhava até onde eu pudesse vê-la e virava a cabeça, como se fosse um fantoche, abrindo – ó Deus! – um sorriso pavoroso que descortinava as duas fileiras de dentes amarelos presos ao crânio. Jasmine era, para todos os efeitos, um esqueleto a me sorrir do meio da sala.
Mais do que isso, Jasmine era um escárnio: zombava de mim a cada dia, vilipendiava com sua presença macabra todo o tempo que eu lhe havia dedicado em adoração até ser confrontado, humilhado por ela com a realidade.
Na quinta-feira, era um dia 12 de junho, levantei-me bem cedo. Tivera outra noite convulsiva e não conseguira dormir. Cheguei à repartição antes dos demais, mas, como era de se esperar, Jasmine já havia chegado. Sorriu-me sem que eu respondesse e acompanhou meus passos até que me sentasse.
Sem lhe prestar atenção, escutei como se a mulher mexesse em sua gaveta e tirasse algo – eu não ousaria olhar. Permaneci cabisbaixo e então senti que seus passos se aproximavam. Cerrei os olhos com força e fiz uma preçe, mas os passos ainda vinham, acompanhados da respiração ofegante e, finalmente, vi quando uma das mãos esqueléticas de Jasmine se apoiaram sobre a minha mesa, com a outra mão, segurava um prato:
– Eu lhe trouxe isso! – e pousou na minha frente algo disforme, semelhante a um bolo, cujo aroma lembrava o chocolate.
Daí, tudo aconteceu, o sorriso, o bolo, o prato, tudo ficou confuso. Levantei-me depressa, tão depressa que minha cadeira foi empurrada para longe.
– Não!!! – gritei – Agora chega! – e segurei Jasmine pelo pescoço, enlaçando meus dedos por sua traqueia. Apertei o mais forte que pude enquanto ela, num tipo de convulsão, deixou escorrer pela boca uma espuma avermelhada. Muito rápido o pescoço soltou um estalo e ela permaneceu imóvel, como se tivesse sido esvaziada, como se fosse uma muda de roupas vazia.
Larguei-a no chão… realmente estava morta, mas os olhos abertos, esbugalhados, ainda fitos em mim fizeram-me sentir um calafrio. Corri ao cômodo dos fundos da repartição e peguei um dos panos pretos para cobrir o corpo.
O pano, velho e sujo, a envolveu completamente: – A mortalha lhe caiu bem. – pensei e peguei nos braços o cadáver que, agora, mais se assemelhava a um fardo de tecido negro não mais pesado que um pequeno feixe de galhos. Atirei o fardo ao rio que corria nos fundos da repartição, que a devorou com satisfação e voracidade. O mesmo rio lamacento que eu admirava enquanto sorvia meus cigarros, agora, levava para as profundezas a minha vergonha e a minha perturbação.
Ninguém lhe sentiu falta, Jasmine simplesmente nunca mais apareceu e eu, depois desse incidente, todos os dias ao final da tarde, quando regressava do trabalho na repartição, realizava um ritual compulsório. De pé sobre uma estreita cadeira, sob a luz do sol vermelho que permeava as minhas persianas, fitava hipnotizado a longa corda que, pendurada numa das vigas do teto, balançava o nó corrediço diante do meu rosto.