O Esqueleto de Jasmine

E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza,
Nem possa ver-te, musa da beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;
MACHADO DE ASSIS

Todos os dias ao final da tarde, quando regressava do trabalho, a minha mente exausta realizava um ritual compulsório. Enquanto a maioria dos homens toma um conhaque ou lê um livro eu mergulhava em contemplação e reflexão. De pé sobre uma estreita cadeira, sob a luz do sol vermelho que permeava as minhas persianas, fitava hipnotizado a longa corda que, pendurada numa das vigas do teto, balançava o nó corrediço diante do meu rosto.

Poderia passar assim, de pé sobre a cadeira, apenas alguns minutos, bem como longas horas. Do alto daqueles poucos centímetros contemplava minha vida com tristeza: a imutabilidade de realizar o mesmo trabalho monótono durante trinta anos e constatar desesperançoso que o futuro seria apenas uma repetição cansativa do presente.

De tal forma a minha vida era tediosa que mesmo acabar com este sofrimento era tarefa complicada. Se alguma emoção, se a mais simples brisa soprasse na direção da morte, eu saltaria com prazer naquele pequeno abismo que minha cadeira representava e na libertação que a corda de cânhamo traria, mas minha alma estava oca. Dia após dia eu estava a contemplar qualquer evidência lógica de que morrer – ou viver – seria a melhor decisão, mas jamais obtivera resposta.

Tudo que me restava era afundar no sofá acompanhando o tique-taque rítmico do relógio e rezar para que amanhã alguma iluminação súbita trouxesse a resposta.

Quando chegava um novo dia, não havia esperança: esta ingenuidade murchara como uma planta que não recebe água. Percorria um pequeno trajeto, de cerca de quinze minutos a pé, de minha casa até a repartição pública que estava sediada num prédio antigo – uma casa grande alugada pelo governo – cujos fundos levavam a um rio barrento que eu gostava de observar enquanto fazia as pausas para fumar. A casa em si era feia, repleta de ângulos agudos, janelas emperradas e mofo. Um dos cômodos de trás ainda permanecia abandonado, repleto de caixas de madeira e grandes pedaços de pano preto. O trabalho que me esperava – e que realizava há trinta anos – consistia em catalogar e dar destino a centenas de fichas e novos funcionários públicos que o Estado contratara.

Passavam centenas, milhares de nomes, direcionados para dezenas de setores em pilhas de papel que cresciam sobre as mesas.

No setor, outros cinco funcionários realizavam a mesma função que eu. Sequer me cabe citar seus nomes; afinal, que me constasse, embora dividíssemos o mesmo espaço, éramos todos invisíveis, todos etéreos, todos mudos e o dia se arrastava assim, entre as batidas tediosas de um carimbo e olhar, pela porta aberta, qualquer brisa eventual que levava as folhas soltas para longe e que fazia dançar os galhos das árvores.

Um dia, porém, enquanto carimbava uma nova remessa de papéis, algo me despertou a atenção, um nome: Jasmine LeBlanc e eu realmente acredito que foi a Providência quem manipulou toda uma enorme cadeia de eventos para que meus olhos entediados vissem justamente este nome sobre a pilha de papéis que eu carimbava apressado; isto porque eu não via nomes, nem pessoas que estes representavam, via somente papéis a receber o brasão azul impresso em tinta. Fora um milagre que eu visse o nome, Jasmine LeBlanc, e fora um milagre o que se operou dentro de mim.

De certa forma que, quem me dera tivesse palavras para explicar, este nome me comoveu. É como se algo no som produzido pelas sílabas ecoasse no meu cérebro e iniciasse uma cascata de sentimentos que jamais sentira. Esse nome significava algo e, semelhante a uma música que não se consegue parar de assoviar ou a um ponto fixo ao qual os olhos não podem resistir, percebi que crescia a sensação de que ali havia algo, algo maravilhoso, acontecendo.

Peguei a ficha e li com atenção: Jasmine LeBlanc, vinte e oito anos, solteira, matrícula 2230, a começar os trabalhos daqui a exatamente um mês e lotada no mesmo setor que eu. Nesses trinta anos, tal notícia de receber um novo colega de trabalho me aborreceria, mas, nesse caso senti uma estranha felicidade, bem sutil, que, timidamente, me fez recostar na cadeira e refletir:

 – Que estranha coincidência… – e sorri – Coincidência ou Providência.

O que acontecera a partir daí foi um tipo de metamorfoseamento das minhas agruras e dos corvos que me pairavam pelo cérebro como enxames o dia inteiro. Daqui a um mês, quando Jasmine chegasse, quem sabe, algo de bom aconteceria na minha vida estéril. Esta sensação que o nome despertara em mim agiu como o ressoar de um sino: – Jasmine! – e o som permanecera ecoando alto e forte, reverberando sem parar, alimentando-se.

Não quero parecer ridículo, mas, na dificuldade de explicar melhor, farei uma analogia. Imagina-se que uma pessoa viva perdida e triste pelos mares da vida, sem esperanças, sem sentido, e um dia alguém lhe fala sobre a bondade de Jesus Cristo, de Seu amor e que tudo isso, toda essa bondade e amor façam o mais forte sentido, mesmo sem provas materiais, mesmo sem evidências científicas, apenas pela fé e que essa fé muda tudo. Isso basta e tudo, de súbito, muda. Assim era comigo: eu sabia, eu simplesmente sabia, que Jasmine seria importante na minha vida, que ela mudaria tudo.

As horas de trabalho passaram rápido e quando cheguei em casa observei com desgosto o que meu lar havia se tornado: um ambiente escuro onde eu mal permitia que a luz entrasse, carente de mobília, frio, sem plantas ou qualquer outra forma de vida que, como dizem, alegra o ambiente. A pequena cadeira, ainda posicionada diante da corda que pendia do teto e se deixava embalar tranquilamente ao sabor da mais leve corrente de ar.

Pela primeira vez em muitos anos abri as janelas todas, todas as cortinas, e um banho de luz esterilizante varreu as sombras imediatamente. Subi na minha “cadeira de suicídio” e joguei por cima da viga a corda que pendia, desamarrei-a e a vi, depois de tanto tempo viva e sedutora, balouçante ao ar, caída como uma serpente, em rolos, pelo chão, exalando seus últimos suspiros.

Não sei se me passava pela cabeça que, de alguma forma, Jasmine representava a minha libertação, minhas atitudes evidenciam que sim, era isso que eu pensava, mas também havia muita expectativa e eu rezava fervorosamente para que a minha “intuição” não estivesse errada porque, sim, admito-o, eu me afogara em solidão mas ansiava amar.

Lembrei-me de algo e dirigi-me ao quarto, onde tirei, debaixo de uma tonelada de papéis desordenados, o velho crucifixo ao qual abdicara e pendurei-o na parede da sala.

Depois de algumas pequenas tarefas, mais uma vez, recostei-me no sofá onde contava os minutos até que a morte chegasse e olhei o relógio na parede, com seu tique-taque incansável e, depois, sem mover o pescoço voltei os olhos ao crucifixo. Dessa vez eu já não esperava a morte, que viria selar meu destino num dia qualquer, sem aviso; agora eu esperava que meu destino fosse selado, mas com data marcada: daqui a um mês. Daqui a um mês eu estaria amando e como isso mudaria a minha vida?

Era fácil conjecturar… Quando Jasmine chegasse, também sentiria essa estranha ligação que eu agora sinto, mas, tímida, enrubesceria e permaneceria calada. Eu poderia ver nos seus olhos que ela compreenderia a mágica ligação entre nós. Ela, olhando, por sua vez nos meus olhos, compreenderia, também.

Caberia a mim, como homem, usar todo meu empenho para que, de modo a não ferir o seu recato feminino, levasse nossas vidas a convergir… Mas isso seria fácil porque o destino conspirara a nosso favor, pusera-nos juntos sob a mesma repartição, de certo, com o propósito firme de que nos unamos e o que seria eu se permitisse que essa oportunidade – que Deus criara para mim – passasse?

Não! Sequer poderia pensar nessa possibilidade. Que miserável eu seria se desapontasse o próprio Deus e não agisse no momento em que Ele desejava que eu agisse.

Uma coisa era certa – e isso jurei fazendo o sinal da cruz e cerrando os punhos – tudo, absolutamente tudo que me coubesse para que o propósito de Deus se cumprisse eu faria.

Minha cabeça borbulhava de pensamentos e meus ombros tremiam sob o peso esmagador da responsabilidade. Havia tanto a se perder e tanto a se ganhar, mas fazia-se tarde e, embora o tempo passasse muito depressa enquanto me perdia em diversas linhas de pensamento, adormeci.

Meus sonhos, geralmente, são mudos e negros como o breu, passa-se a noite inteira como num piscar de olhos e sou incapaz de lembrar de qualquer sonho. É como se morresse ao dormir e despertasse para a vida com o nascer de um novo dia.

Ao abrir os olhos, lembro-me bem, o primeiro pensamento que tive foi “faltam, agora, vinte e nove dias”.

Na repartição, para minha sorte, o trabalho que eu executava era monótono e maquinal o suficiente para ser executado enquanto o cérebro viajava ao fumarento mundo dos devaneios. Embora eu não tivesse muitas informações para inferir como seria a aparência de Jasmine, a partir do nome é possível traçar algumas possibilidades. O nome remetia à flor, jasmim, que é delicada e branca, de aroma suave e romântico. E que região do mundo deu origem ao belo jasmim? Onde mais, senão no misterioso oriente, cenário de tantas histórias maravilhosas que eu lera quando jovem.

Se Jasmine fosse, como a flor, delicada e descendente daquela região mágica, já podia antevê-la com os cabelos negros cacheados, os grandes olhos, muito negros e refletivos como espelhos, a pele com uma atrevida cor morena bem suave e uma voz profunda, como se soubesse todos os mistérios da vida. Seu rosto seria ornado pelo nariz aquilino dos árabes e pelos lábios vermelhos, tal qual os de Xerazade nas Mil e uma Noites.

O sobrenome LeBlanc, por outro lado, remete à França. Quem sabe Jasmine fosse, em vez de uma flor da pérsia, a descendente de alguma distinta linhagem francesa que, pela decadência dos nossos dias, perdera tudo e hoje em dia vivia entre os comuns. Tanto melhor, pois isso significava que tinha cultura, que trazia no próprio sangue a distinção de gerações de nobres. Se assim fosse, seria de constituição delgada, alta, com um andar de pluma e os cabelos negríssimos, muito lisos e brilhantes. A pele, branca como o mármore, faria jus ao sobrenome “LeBlanc”.

Pensar nisso, é claro, desfraldava diante de mim um tapete infinito de possibilidades, afinal, apesar da análise lógica do nome remeter às imagens que citei, Jasmine poderia ser simplesmente diferente, talvez ruiva, com os cabelos longos e encaracolados como chamas da Irlanda, talvez loira e meiga, transbordante da singeleza inglesa.

Era divertido passar as horas devaneando sobre possibilidades de rostos, de lábios, de olhos… todos estes me encantavam e a cada nova combinação, mais crescia em mim a certeza de que eu amaria Jasmine, quer fosse ela como as fortes mulheres do sul quer fosse delicada como as mulheres do norte.

Quando me cansava do meu universo imaginativo, dirigia-me para os fundos da repartição e acendia um cigarro, debruçava-me e observava o rio que, como já disse, corria pelos fundos. Ficava absorto nas águas barrentas, profundas e revoltas que, às vezes, pareciam rugir com violência, arrastando um galho ou a carcaça de um bicho infeliz que se afogara. Ao fim do cigarro, atirava no rio, com um estalar dos dedos, o que sobrara do filtro semicarbonizado e sentava-me novamente na minha cadeira, retomando os pensamentos: seria loira, ou, muito mais provável, teria os cabelos e olhos castanhos como o mel, no mesmo estilo das belas mulheres de Portugal, da Espanha, da Itália ou da Grécia?

A verdade é que – direi, para minha vergonha – que conforme passaram os dias, mais que uma vez os colegas de repartição observaram-me, inadvertidamente, a suspirar sobre o papel onde eu, pela primeira vez, soube da existência de Jasmine LeBlanc.

Estava evidente que eu havia mudado de alguma forma, tão evidente que à minha volta os cônvivas de trabalho percebiam e tratavam com pilhéria o fato de que eu estava inegavelmente apegado a uma mulher que eu sequer vira.

 – Lá vai ele suspirando em cima de um pedaço de papel novamente! – diziam, enquanto eu me pegava, pela milésima vez, relendo devotamente a ficha à qual aplicara o carimbo.

Mas eu, diante desse gracejo, estava forte e percebia na pilhéria um tipo de confirmação pública de que eu, sim, de fato, amava Jasmine. Que importa se eu jamais havia visto a mulher que o pedaço de papel representava? Dentro de poucos dias a troça daria lugar ao espanto, quando constatassem que eu tinha razão, que o sentimento que me inflava o peito era como uma premonição divina e que, de fato, Jasmine e eu estávamos destinados a ficarmos juntos.

Enquanto os dias passavam, eu me resignava, mesmo sabendo que me tornara motivo de piada, resignara-me porque já saboreava por antecedência a doce vingança de saber que eu estava certo, que quando Jasmine chegasse o mundo engoliria suas palavras de escárnio e murcharia, arrependido.

Os dias passaram lentamente, aumentando em proporção geométrica a minha ansiedade. Faltavam vinte dias! Faltavam quinze dias! Faltavam dez dias! Eu, na verdade, contava os segundos, e quanto mais eu contava, mais o tempo parecia se dilatar. Um dia parecia conter mil anos e os segundos pareciam ser compostos de horas.

Ao faltarem cinco dias para a chegada de Jasmine, entrei em transe; já não conseguia mais trabalhar e meu sofrimento era imenso. A angústia chegara a tal ponto que olhar ao relógio e pensar que ainda faltavam dias revoltava-me o estômago e tomava-me o ar.

Na véspera, um sentimento parecido com a insanidade completa tomou conta de mim. Eu via nas paredes, nos quadros, nas sombras, diversas formas de mulher que se metamorfoseavam, ora loiras, ora morenas, ora ruivas, ora alegres e ora tristes, mas, todas elas, certamente eram Jasmine.

O meu cérebro já havia combinado tantas possibilidades, tantos rostos, tantas histórias, tantos trejeitos que, não importando como Jasmine fosse, ela certamente preencheria o meu universo de possibilidades de alguma maneira, certamente seria parecida com uma dessas mulheres que ideara nos meus devaneios e como de antemão eu já as amava todas, era certo que amaria Jasmine.

Estranhamente, quando o dia chegou, acordei calmo. O espírito serenara, talvez para evitar que eu entrasse numa condição de loucura definitiva e irreversível – o real motivo, jamais saberei. Tudo o que importa é que no dia tão aguardado, embora eu esperasse acordar com o coração explodindo no peito, levantei-me amparado pela certeza de que minha vida mudara, arrumei-me com esmero e olhei, com satisfação, no espelho que, apesar de meus cinquenta anos, ainda tinha os cabelos negros e apenas um tom acinzentado muito suave começava a me surgir nas têmporas.

Parti à repartição o mais rápido que pude, percorrendo o trajeto de quinze minutos em não mais que dez, desalinhando o terno que tanto cuidado me tomara.

Para meu espanto, quando cheguei, uma fila enorme de pessoas se tumultuava em frente ao meu setor.

 – Que tolo eu fui! – pensei – Como pude me esquecer de que, além de Jasmine, centenas de outras pessoas são admitidas e devem ser enviadas aos seus respectivos locais de trabalho!?

Isso é o que acontece quando um homem perde a perspectiva do todo: quase cego eu carimbara centenas de papéis, mas apenas tinha atenções para um, o que me apresentara Jasmine. Inadvertidamente me esquecera de que todos os anos, centenas de pessoas, em sua maioria odiosas, se aglomeram frente à minha porta aguardando os papéis carimbados que lhes autoriza seguirem aos respectivos setores.

Eu era obrigado a cumprir essa tarefa, amarrado pelos grilhões do ofício. Não adiantava aguçar os olhos e tentar reconhecer Jasmine no meio da multidão: era um mar de pessoas que se agitava e entrava em bandos na minha pequena sala, dirigindo-se à minha mesa.

Com desgosto comecei a atender as pessoas que chegavam. Tinha uma voz monocórdia, um ar de enfado no rosto: era visível meu desprazer, de tal modo que eu evitava olhar nos rostos.

 – Nome? – perguntava eu. As pessoas respondiam e eu, mecanicamente, procurava na pilha de papéis, organizados alfabeticamente.

Se alguém tentava iniciar alguma conversação sem sentido sobre o clima ou sobre a agitação do ambiente, eu apenas me abstinha em responder. Depois de algumas horas e de dezenas de pessoas, ao atendê-los, eu sequer erguia a face. Perguntava-lhes os nomes entre os dentes, como se rosnasse, entregava-lhes o papel carimbado, que arrancava da montanha em minha mesa e, antes que dissessem qualquer palavra, já vociferava: – O Próximo!

 – Nome? – perguntei ao próximo. E uma voz baixa e rouca respondeu:

 – Jasmine LeBlanc.

Estremeci. Senti como se um pulso elétrico me subisse dos pés à cabeça e diante do nome permaneci imóvel, a cabeça ainda baixa, os olhos, abertos ao máximo. Uma gota de suor, imediatamente, me escorreu pelo canto esquerdo da face.

Ainda tremente, ergui a cabeça e a vi, pela primeira vez, diante de mim, a mulher que eu tanto esperara.

Usava um vestido azul desalinhado e decotado. O decote permitia ver as costelas salientes, como uma jaula de gravetos quebradiços onde flutuava uma pequena cruz presa por cordão prateado. O pescoço, fino e longo, evidenciava grandes artérias azuis, que pulsavam, e o rosto, de formato quadrado, tinha um queixo que se projetava para frente, enquanto a pirâmide nasal, achatada na parte de baixo, emitia um ruído que se podia escutar enquanto cada golfada de ar era engolida. Os olhos, castanhos e piedosos, eram embaçados como olhos de vidro, os cabelos, desalinhados, eram cor de terra e longos. Jasmine sorria com os dentes amarelos e me olhava fixamente.

Chocado e aterrorizado, entreguei, lentamente, o papel carimbado para Jasmine, ela, estendendo-me a mão cadavérica e cérea tomou o papel, deixando que seu dedo indicador, inadvertidamente, me tocasse. O dedo era gélido, áspero, com grandes articulações protuberantes.

 – Você está bem? – perguntou-me ela – Parece pálido!

Num triste gesto de compaixão, Jasmine tentou tocar-me o ombro, gesto esse ao qual me desvencilhei com repulsa.

 – Não estou bem e vou-me embora! – falei, levantando-me bruscamente e saindo da sala.

Ainda dezenas de pessoas aguardavam do lado de fora, mas isso não me interessava. Passei, impassível, pela fila de gente como se fossem invisíveis e, com as mãos nos bolsos e os punhos cerrados, dialogava comigo mesmo:

 – Um monstro! Meu Deus, aquela mulher é um monstro! Como isso pode acontecer, como?

Ao chegar a casa, tudo me parecia mais lúgubre, as sombras dos cantos pareciam mais negras, o Cristo na parede parecia sorrir de escárnio.

Com um grito, arranquei da parede a cruz e a fiz em pedaços no chão, depois desmaiei.

Permaneci inconsciente por longas horas, não saberia dizer ao certo quanto tempo, mas quando voltei a mim, já se havia passado um dia inteiro e esse sono pesado que me acometera deve ter sido um sono convulsivo, repleto de pesadelos e horrores, pois, à minha volta, havia móveis revirados, papéis desorganizados e vidros despedaçados. Um suor amargo me banhava.

Mesmo assim, cambaleante, ergui-me, passei as mãos pelos cabelos ensopados e voltei à repartição. Ainda era bem cedo, mal surgiram as primeiras luzes da manhã e ainda era possível ver, no horizonte distante, um resquício da noite que se afastava. Quando já bem perto da repartição, observei algumas luzes acesas.

Tudo era confuso em minha mente; não estava certo se, de fato, havia abandonado minha cadeira e corrido para casa, se desmaiara, se dormira ou se a Jasmine que minha memória desenhava era realmente aquela figura hedionda.

Para meu maior horror, entretanto, ao adentrar a sala, lá estava ela: Jasmine organizava papéis distraidamente, com os ossos estalando e, encurvada para verificar os arquivos, permitia que se desenhasse pela seda do vestido, cada uma das vértebras de sua coluna.

Não pude abafar um pequeno grito feminil: a imagem me recordava por demais uma das harpias que haviam de ter atacado Jasão e os argonautas na mitologia grega. Vindo em minha direção, ela me estendeu as garras:

 – Bom dia! Sente-se melhor?

Afastando-me e evitando o toque, respondi com a voz enfraquecida:

 – Sim… sim… algo melhor…

Ironicamente, mais uma vez, os dias se arrastavam, mas dessa vez porque eu não suportava o asco que me causava a presença de Jasmine. Para onde quer que eu desviasse o olhar, sua horrenda e cadavérica figura aparecia em meu campo de visão. Assombrava-me também em casa, não apenas a sua palidez de mármore ou sua respiração pesada encrustadas na minha mente, mas a vergonha esmagadora de tê-la amado, sinceramente amado e ver meus sonhos transfigurados numa carcaça ambulante.

Passou-se uma semana nessa agonia, o meu espírito estava exausto. Jasmine era a primeira a chegar à repartição, por isso eu não tinha sequer um instante livre de sua presença. Passava o tempo cabisbaixo e a medo de que, quando erguesse o olhar, deparasse-me com a imagem tétrica de cadáver fito em mim.

Mesmo sem olhar, eu podia ouvi-la (assim como aos risos dos meus colegas de trabalho): seus passos se arrastando pela sala, sua respiração passando pelas minhas costas enquanto levava ou trazia algum calhamaço de papel e eu, todos os dias, passava as horas na repartição com os olhos cravados na mesa e a cabeça entre as mãos, absorvido no pesadelo que minha vida se tornara.

Não consigo dar ideia exata da perturbação cruel pela qual eu passava… se alguma vez tomava coragem de abrir os olhos, era somente para vê-la se arrastando pelo ambiente, bem devagar, caminhava até onde eu pudesse vê-la e virava a cabeça, como se fosse um fantoche, abrindo – ó Deus! – um sorriso pavoroso que descortinava as duas fileiras de dentes amarelos presos ao crânio. Jasmine era, para todos os efeitos, um esqueleto a me sorrir do meio da sala.

Mais do que isso, Jasmine era um escárnio: zombava de mim a cada dia, vilipendiava com sua presença macabra todo o tempo que eu lhe havia dedicado em adoração até ser confrontado, humilhado por ela com a realidade.

Na quinta-feira, era um dia 12 de junho, levantei-me bem cedo. Tivera outra noite convulsiva e não conseguira dormir. Cheguei à repartição antes dos demais, mas, como era de se esperar, Jasmine já havia chegado. Sorriu-me sem que eu respondesse e acompanhou meus passos até que me sentasse.

Sem lhe prestar atenção, escutei como se a mulher mexesse em sua gaveta e tirasse algo – eu não ousaria olhar. Permaneci cabisbaixo e então senti que seus passos se aproximavam. Cerrei os olhos com força e fiz uma preçe, mas os passos ainda vinham, acompanhados da respiração ofegante e, finalmente, vi quando uma das mãos esqueléticas de Jasmine se apoiaram sobre a minha mesa, com a outra mão, segurava um prato:

 – Eu lhe trouxe isso! – e pousou na minha frente algo disforme, semelhante a um bolo, cujo aroma lembrava o chocolate.

Daí, tudo aconteceu, o sorriso, o bolo, o prato, tudo ficou confuso. Levantei-me depressa, tão depressa que minha cadeira foi empurrada para longe.

 – Não!!! – gritei – Agora chega! –  e segurei Jasmine pelo pescoço, enlaçando meus dedos por sua traqueia. Apertei o mais forte que pude enquanto ela, num tipo de convulsão, deixou escorrer pela boca uma espuma avermelhada. Muito rápido o pescoço soltou um estalo e ela permaneceu imóvel, como se tivesse sido esvaziada, como se fosse uma muda de roupas vazia.

Larguei-a no chão… realmente estava morta, mas os olhos abertos, esbugalhados, ainda fitos em mim fizeram-me sentir um calafrio. Corri ao cômodo dos fundos da repartição e peguei um dos panos pretos para cobrir o corpo.

O pano, velho e sujo, a envolveu completamente: – A mortalha lhe caiu bem. – pensei e peguei nos braços o cadáver que, agora, mais se assemelhava a um fardo de tecido negro não mais pesado que um pequeno feixe de galhos. Atirei o fardo ao rio que corria nos fundos da repartição, que a devorou com satisfação e voracidade. O mesmo rio lamacento que eu admirava enquanto sorvia meus cigarros, agora, levava para as profundezas a minha vergonha e a minha perturbação.

Ninguém lhe sentiu falta, Jasmine simplesmente nunca mais apareceu e eu, depois desse incidente, todos os dias ao final da tarde, quando regressava do trabalho na repartição, realizava um ritual compulsório. De pé sobre uma estreita cadeira, sob a luz do sol vermelho que permeava as minhas persianas, fitava hipnotizado a longa corda que, pendurada numa das vigas do teto, balançava o nó corrediço diante do meu rosto.

O Monstro

Depois da festa, quando a noite veio
Cobrindo os aposentos de penumbra,
O monstro a rir-me, como quem vislumbra
Aproximou-se trêmulo de anseio.

“Não sabias, amigo, que eu viria,
Porquanto esta presença faz-te espanto?”
Ouvia eu, apavorado a um canto
Enquanto a criatura me inquiria.

E sem dizer mais nada, simplesmente,
A salivar, a horrenda criatura
De um golpe, para minha desventura,
Partiu-me os intestinos friamente.

E enquanto eu, já pálido e tremente
Em preces e lamentos me entregava
O monstro sem escrúpulos ficava
A devorar-me as tripas ferozmente.

Depois, por uma breve comoção,
Falou-me em meio às lágrimas malfeitas:
“Não venho deste inferno que rejeitas,
Mas venho do teu próprio coração!”

Memórias de meu Avô

Não sei bem o motivo, mas atualmente – e mais que o normal – tenho pensado em meu avô, que morreu já há bastante tempo, talvez mais que dez anos. Ele foi um homem bruto, forte, de pele bem morena e olhos verdes cor de esmeralda que pareciam faiscar sob a luz certa. O senhor Antônio Ferreira da Silva vinha de uma época e de uma cultura onde os homens não aceitavam questionamentos porque deviam ser fortes e duros no comando da família.

Ele teve uma vida muito interessante, cheia de mulheres, de filhos, de aventuras – muitas violentas – que dariam um livro. Ele viajou, trapaceou, traiu, amou, lutou, trabalhou, perdeu e ganhou, tudo com muita intensidade e paixão, ao estilo dos homens antigos.

Ficou viúvo três vezes e encarou isso com a resignação dos homens fortes, que encaram a vida e seus desafios com ferocidade, como se fosse da natureza da existência dobrar os homens e como se fosse da natureza dos homens não se deixar dobrar. Para ele era como se a vida fosse um bicho, cujo instinto era esse: trazer dificuldades, trazer dor e miséria, e que ele, bom caçador que era, estivesse preparado e jamais se abalasse.

– Eu atiro muito bem! – disse-me ele um dia, já quando veio morar conosco depois de perder uma perna e de ter a fala prejudicada por um AVC. Continuava orgulhoso, era forte e bonito, mesmo quando a doença lhe arrancou um pedaço do corpo e sempre, sempre mesmo, era um galanteador inveterado.

Um AVC final tirou dele tudo que restava; almoçou, mas não se sentia bem. Passou mal e foi levado ao hospital, de certa forma, ainda consciente, mas já era tarde. Não piscava, não falava mais e os olhos de esmeralda mudaram para um verde claro, como o do vidro.

Por muitas vezes eu tinha visto meu avô sair de situações onde eu duvidava que ele saísse e, dessa vez, quando tive certeza de que ele se recuperaria, não houve volta.

Lembro-me muito bem que derramei uma lágrima, somente uma, no dia de sua morte e não sei exatamente o porquê. Partia-me mais o coração ir em seu quarto, agora escuro, e observar todas as coisas que ele gostava. O pacote de biscoitos recheados, ainda pela metade, o copo d’água cheio e não tocado, todas as roupas, tão bem dobradas na gaveta, o rádio desligado (quem teria coragem de ligá-lo um dia?).

Para mim, foi como se meu avô tivesse sido subtraído de um quadro e, para onde quer que eu olhasse, sempre haveria algo faltando. A morte de meu avô, aquele homem que parecia criação de um autor de livros de aventura, me fez pensar na morte de todos nós, em como é triste, num belo dia de domingo, simplesmente deixar de Ser e todos os nossos objetos, todos aqueles que amamos, tudo o que somos, vira uma subtração ou uma inutilidade.

Quando o enterraram, mais tarde no outro dia, também não sei o porquê, pude dar ao meu avô as lágrimas que ele realmente merecia.

Tanatologia

Embora já não seja surpresa para ninguém, ontem morreu o escritor que todos conheciam e acho-me no direito, mesmo diante das circunstâncias, em anunciar o que vi, já que passei com ele os seus últimos momentos e estive do seu lado no seu último suspiro.

O meu dever era estar com ele; para mim, era como uma tarefa de civilidade, mas, confesso, foi com estranheza que aceitei essa missão de estar ao seu lado em seus últimos momentos. De modo algum é natural estar ao lado de uma pessoa que, certamente – muito mais certamente que a lógica irrevogável da vida – morrerá, com um tempo e hora mais ou menos definidos.

Ele não me era totalmente estranho, mas prefiro não dar aqui as minhas impressões; ele próprio, no tempo que passamos juntos, não arranjou para si definição alguma; não era escritor, nem cientista, nem músico e nem pintor: agora era só humano… e morria.

Arrumei minhas coisas, uma quantidade pequena de roupas e alguns pertences, afinal, eu não me demoraria, mas por pena ou algum sentimento parecido, evitei pensar nisso. O meu lado cruel (ou realista) lembrou ainda de que eu logo voltaria ao lar e que a minha estadia ao lado dele seria bem curta.

Parti bem cedo, sem conhecer a localização exata da casa. Sentia medo… o meu espírito estava deprimido, esmagado por essa forte consciência do fim. Não pensava na morte dele, ou, antes, pensava na morte dele, mas via refletido em seu destino o meu próprio e inexorável futuro e isso me fazia pensar… Também achava estranho esse desejo. Deveria ser um homem sozinho. Nunca nos havíamos visto antes, mas, de alguma forma, eu precisava estar ali com ele quando tudo terminasse e por desejo dele, talvez para não se sentir sozinho, para ter alguém com quem conversar até que o tempo chegasse.

Achei a imensa casa de portas abertas e não havia ninguém, nem som algum e nem movimento… só um eco rebatia de volta o som dos meus passos enquanto eu atravessava com as malas por um longo e espaçoso hall. Esperava isso de um homem que morre; quase como por pressentimento, sabia que ele não estava na casa, pois eu não quererria estar dentro de uma casa se morresse. Fui para o jardim, onde era certo encontrá-lo e ele lá estava.

Para minha surpresa, embora eu sentisse muito tudo isso, ele era diferente do que eu imaginara. Estava sentado, cobria as pernas com uma manta, deixando umas chinelas aparecerem e era jovem. Quando cheguei sorriu um sorriso bonito, sem se levantar e sem dizer nada: já sabia, pelo visto quem eu era. Mostrou-me a cadeira em frente e só disse a primeira palavra depois que eu havia me sentado. Perguntou da viagem, perguntou meu nome. Falava baixo, sempre sorrindo, sempre o mesmo sorriso bonito que havia me mostrado antes de mais nada. Era um jardim ensolarado nesse dia.

A conversa inicial durou muitas horas, embora não tratássemos nada além de banalidades e o tempo corria frouxo, com alguns risos de ambos. Nenhum de nós falava sobre aquilo que ambos sabíamos muito bem. Ele sabia do seu destino, mas estava sereno e eu, ao contrário do que imaginei, mantive também a serenidade, mas não devido á minha natureza; era a constituição dele que havia me causado isso. O tempo todo me falou da vida, apontava para uma existência límpida, como se entendesse e quisesse me poupar cada segundo.

Todo o tempo que passamos, nenhum de nós tocou no assunto, pois não era necessário mais perder tempo com isso – agora eu entendia – e ele morreu numa manhã, ensinando-me também como morrer.

Os Campos

Na carne humana brotam-se as feridas
Feito uma erva escura florescendo
Em geometria e fome apodrecendo
E alimentando-se das nossas vidas.

Fazem surgir nas pústulas fendidas
Os córregos que vão umedecendo
De fluidos sangüíneos e trazendo
Miríades de germens homicidas.

Depois, tremendo pobre e fracamente,
Os campos totalmente deflorados
Pela infecta e pútrida semente

Germinarão os pesarosos fardos
E deixarão colher-se unicamente
Os féretros e corpos sepultados

À Minha Mãe

Que amor existe nessas mãos doentes
Que afaga, humilha, manipula e enlaça,
Jogando-nos, coitados, na desgraça
Das mágoas deste mundo dos viventes?

Depois que o útero, em dores contundentes,
Num vômito de alívio nos rechaça
Transforma-nos a todos na carcaça
Que os bichos comerão futuramente.

E logo, nesse hiato que nos reste
Entre a vida e uma morte anunciada
De dores, de tormentos e de peste

Sabei, ó minha mãe equivocada
Que eu não pedi o prêmio que me deste
E não lhe devo, simplesmente, nada…

Meu Passamento

Não veio hoje esta manhã tão pura
De um céu azul e alegremente claro;
Em seu lugar, um vendaval amaro
Acompanhado de uma névoa escura.

E no meu peito, tal qual a sepultura,
O coração ao funeral preparo
De tudo aquilo que me for mais caro
Num cemitério de hedionda agrura

Pois ao morrer, num último gemido,
Na escuridão funérea do meu quarto
Pousado ao meu leito apodrecido

O abutre vislumbra estupefato
Nas faces do meu rosto contorcido
A estranha alegria com que parto.

O Morcego

Vejo um morcego sobre a tumba aberta
Tem sede e bebe essa miséria humana…
Deleita-se no fel que a carne emana
E ri da nossa fé vaga e deserta

Revoa sob a lua e sempre alerta
Espreita a nossa imensa dor profana
Mostrando todo o escárnio à gente ufana
Que vive sem saber que a morte é certa.

Quem sabe venha um dia, pouco a pouco,
Lembrar-me ao invadir minha janela
De que na minha vida, insano e louco,

Perceba a vil verdade que há nela:
Feliz é o morcego, o verme rouco,
De quem a própria morte cuida e vela

A Janela

Passava eu sempre em frente àquela casa
Sem notá-la do meu tristonho bonde;
Escondida entre a folhagem vasta
E uma velha e ressequida fonte.

Mas eis que um dia, enquanto eu dormitava
Sentado ao bonde, a chacoalhar nos trilhos,
Reparo numa jovem que me olhava
Debruçada à janela, nos caixilhos.

Lançava-me, assim, u’olhar estranho
– Algo entre amoroso e inibido –
Mas deixou-se a impressão estar ficando
Às costas do meu bonde esbaforido.

Assim, levei meu dia normalmente
Sem nem pensar na jovem da janela;
Porem , quando era tarde e eu retornava
No mesmo e igual lugar estava ela.

Então eu pude vê-la com clareza,
Olhando-me contente c’um sorriso
Enquanto caminhava o velho bonde
E eu lhe acenava indeciso.

Desse dia em diante, à mesma hora,
Quando passava o bonde, às três e cinco,
A jovem da janela me esperava
Enquanto eu lhe acenava com afinco.

Passou-se o tempo, como se esperava,
Navegando nos eflúvios do namoro
E eu, apaixonado, enrubescia
Cedendo aos meus instintos de decoro

Havia vezes, quando eu passava
Ardente de saudades da donzela,
Mas eis que a minha dama me esperava
De amores, suspirante, na janela.

Chegou um dia em que eu, não resistindo,
Saltei do bonde ainda em movimento
Rasgando as roupas nos cercados baixos
E atravessando o matagal cinzento.

Porém, ao ver, de perto, aquela casa
Querendo que a donzela me sorrisse
Sofregamente pus-me a procurá-la
Até que a doce imagem me surgisse:

Estava na janela e me esperava
Com o mesmo anelo e amor ardente
E eu “espera um pouco” lhe gritava
Enquanto tinha o coração tremente.

Abrindo, então, a porta docemente,
Olhei sobre a janela, repousada,
Para meu grande e imenso desespero
Apenas a cabeça decepada…

Giorgio

Ergueu-se um dos moços que ali se encontravam. Um homem de aparência magra, pálida e sombria que, com um olhar vago e um suspiro profundíssimo, esvaziou o copo e falou:

– Também eu amei uma mulher certa vez!… Elenida era seu nome… Elenida!… Nunca se passou um dia sem que eu voltasse a ela meu pensamento e meu pranto. Nunca houve uma prostituta que eu desfrutasse sem ter no peito o vazio e o remorso causado pela lembrança da única pessoa que eu amei na vida.

Conheci-a ainda na infância, eu tinha treze anos e ela dez ou onze – não me lembro ao certo. Nessa época, ambos fazíamos parte de uma aristocracia hipócrita e corrupta que tinha laços de amizade tão fortes quanto os de Brutus ao Cezar; mas nós éramos diferentes

Havia em nós uma afinidade irresistível e nossa amizade crescia.

Essa amizade tinha algo de estranho e triste, algo depressivo que não posso e nem nunca pude explicar. Era como se lamentássemos nossa impotência diante da tristeza um do outro e nos desconsolasse saber que não havia consolo possível.

Conforme o tempo passava, cada vez mais eu aprofundava minha mocidade no vício e nas bebedeiras. Não havia ninguém no mundo que eu respeitasse ou com quem eu me importasse – exceto Elenida, claro. Mas, nessa época, eu ainda não a amava conscientemente.

A verdade, companheiros, é que para mim tudo era uma superfluidade. Tudo era um desperdício de um tempo que iria, inevitavelmente, acabar no abraço úmido da terra sepulcral… Atribuís à minha necessidade o desencanto e o desapego de minha alma? Não! Eu nunca passei fome, nem nunca passei frio. Eu tinha uma mãe preocupada e zelosa, meu pai era rico… ainda assim, eles nada significavam para meu tenebroso ser.

As minhas noites eu passava embriagado pelo vinho ou pelo ópio…

– Ah! Deus, que maçada! – disse Archbald, embriagado – os enamorados deviam saber o quanto são patéticos!

Na verdade Archbald, nem tudo que eu falasse bastaria para descrever a relevância de Elenida em minha vida! …

Assim foi se passando a minha juventude: nós, sempre juntos, sempre amigos… Mas, eu nunca tinha percebido (hoje percebo totalmente) que nosso apego era algo mais profundo. Quando caía a noite eu me transformava em outra pessoa: ia às orgias, deleitava-me no vinho e no meu vicio de ópio. Odiava a todos e a todos eu mataria sem pestanejar só pelo prazer de ver, esvaindo-se dos corpos moribundos, o precioso sangue.

Às vezes, na alucinação de uma dessas noites, eu percorria as vielas desertas da cidade pobre e cometia nos mendigos dali todo o tipo de carnificinas e atrocidades; o sangue não bastava, não bastava! Eu queria ver dor! Eu queria saborear o medo! Matá-los não era o bastante: eu queria despedaçar aquelas almas que eu arrancava dos corpos violentamente. Queria que o sofrimento deles nunca terminasse, que sua dor nunca parasse… Eu queria alguém que sofresse mais que eu…

Foi numa noite fria e solitária que eu percebi tudo. Eu lia um livro em minha biblioteca e fiquei desesperado repentinamente.

Isso era normal; o que não era normal para mim era querer que alguém estivesse a meu lado… esse alguém era Elenida.

Desse dia em diante, passei a olhá-la com uma certa saudade, uma certa necessidade… Sim! Por ela eu abandonara o ópio, mas o meu vício eu apenas substitui por outro: o vicio da presença de Elenida.

– Com todos os diabos, Giorgio! -disse Archbald – se eu desejasse uma história de amor eu leria uma dessas ridículas novelas efeminadas! A tua narrativa está a ponto de fazer-me dormir antes que o álcool faça efeito. Onde está o sangue? A morte? A desgraça? Onde está o acontecimento que faz gelar a vida? Basta desse teu conto florido e entediante! À morte! À morte!…

– Ah, maldito! Calai a boca! Não respeitais nem a dor infinita de um passado?… A morte será tanta, a desgraça será tão completa, que até a tua alma, podre e perdida, haverá de tremer…

Como eu dizia, percebi que o que eu sentia não era apenas o apego de duas almas afins: era o amor. Eu tinha dezessete anos.

Oh, não me entendam mal! Elenida mudou minha vida, mas não transformou minhas trevas em flores. Eu ainda era o mesmo: ainda desprezava todo o resto – talvez com mais força que antes.

Certo dia meus pais foram viajar de carruagem e nunca mais retornaram com vida. A morte os encontrou no fundo de um precipício.

Eu mesmo cuidei dos detalhes do enterro e eu mesmo cuidei em disfarçar o horror dos dois cadáveres desconjuntados pelo impacto da queda… Não se iludam: eu não nutria o menor amor por aquelas duas pessoas que eram meus pais. Eu quis enterrá-los apenas para constatar a podridão dos corpos, e quando os vi, os olhos saltados das órbitas, os crânios esmagados, eu percebi que eram menos que lixo.

Quando a terra os cobriu Elenida estava a meu lado. Sequer uma lágrima eu derramei, na verdade eu só queria rir de uma grande ironia: a vida é como os seres humanos: nada além de podridão.

Cheguei aos vinte anos totalmente fascinado por Elenida. Sua beleza, sua elegância natural: tudo nela era aquilo que eu só poderia sonhar… Até sua inteligência era algo fora do normal: eu jamais havia encontrado alguém com uma inteligência tão grande quanto a minha e a todos eu tratava como vermes; mas Elenida era tão culta e inteligente quanto eu. Em tudo que eu fazia, lia ou escrevia havia sempre a opinião dela e vice-versa.

Apesar de tudo, meu amor era ainda um segredo. Mesmo com toda a nossa cumplicidade, com todos os momentos em que desfiamos a nossa admiração um pelo outro, nada foi dito.

Faltavam cinco meses para os meus vinte e um anos quando sob a luz do luar, eu tomei-lhe uma das mãos e disse que a amava. Ela sorriu e me falou que isso era óbvio para nós.

Foram os dias mais felizes da minha vida, mas Elenida estava sorumbática. Perguntei-lhe o que havia de errado. Ela sabia que tentar mentir era inútil, devido a nossa “simbiose”. Contou-me que iria se casar em breve com um primo extremamente rico, aumentando as riquezas familiares. Nada podia ser feito…

Ao receber essa notícia, o desespero de que fui tomado era enorme. Não era justo!… Mas não era uma questão de justiça. Tudo estava acertado: o primo chegaria em poucos dias, de navio.

Não posso dar-lhes a mínima idéia das noites que vaguei a esmo procurando uma saída, uma luz.

Logo as noites não bastariam para mim. Tranquei completamente as portas e janelas de minha mansão, de modo que nem um raio de luz penetrasse por elas. Minhas pesadas cortinas pretas davam a tudo um ar funesto e horrendo… Os mendigos, à noite, começaram a morrer de maneiras cada vez mais brutais. Eu os matava e imaginava-lhes com o provável rosto do amaldiçoado pretendente. Matava-os em quantidades cada vez mais altas – felizmente, nunca haverá escassez de mendigos.

…O meu ódio era inútil.

Passaram-se muitos dias sem que eu visse Elenida… A tristeza, o medo e o abandono foram pesados demais para mim. Apanhei meu punhal e rasguei nos pulsos profundas feridas: eu queria a morte. O sangue se esvaía rapidamente, mas eu estava ainda lúcido. Caminhei por toda a minha mansão, tingindo as salas de vermelho. Finalmente o frio se abateu sobre mim e eu cai sobre a poça de meu próprio sangue. Com as forças que me restavam, virei meu corpo empalidecido para que a morte não me chegasse pelo afogamento e fitei o teto até que meus olhos se fecharam e a inconsciência tomou conta de mim por completo.

Esse sono não era ainda a morte: acordei horas mais tarde, envolto no abraço e nas lágrimas de Elenida, que vinha dar-me adeus e encontrara-me na agonia da morte… Lembras-te dos beijos que imprimias nos lábios daquele cadáver, ansiando que ele revivesse, Sigfried? Pois foram os beijos de Elenida que me trouxeram à vida.

Com a face banhada em pranto, Elenida perguntou-me por que eu fizera aquilo. Tentei falar, mas faltavam-me forças. Ela aproximou-se de meus lábios e eu balbuciei, gorgolejando sangue: “minha culpa!…”.

Elenida era incrivelmente hábil também com a medicina. Cuidou de meus pulsos com extrema facilidade e tentou me convencer que não era minha culpa.

Mas era! Se eu tivesse falado antes… Ela tinha razão em um ponto: era tarde demais para tudo. O navio que trazia à bordo minha desgraça chegaria em uma semana.

Nos dias que se seguiram eu passei profundamente abatido. Ainda assim, meus ferimentos cicatrizavam rapidamente e pude colocar-me de pé com uma rapidez impressionante… a minha alma estava doente, mas meu corpo ansiava por regenerar-se. Por fim, achei que era hora de desistir: é inútil lutar contra o inevitável.

Era inútil, mas isso não me consolava. Nos dois dias que me restavam, a única coisa que fiz – a única para a qual e ainda tinha forças – foi embriagar-me, taça após taça, garrafa após garrafa, sem parar.

Quando a noite caiu, trazendo consigo um denso nevoeiro, a minha mente de bêbado fez-me levantar e caminhar pela cidade. Tudo parecia confuso; para onde eu iria?

Hoje eu sei, cavalheiros, que Deus não existe; o diabo, entretanto, sempre velará por seus fantoches… creio que foi ele, o diabo, que me deu a idéia de ir até o porto.

Tudo era sombrio naquele cenário horrendo, as águas fumarentas do mar, o nevoeiro, as madeiras apodrecidas pela maresia… Haviam três navios ancorados, Procurei por um que fosse inglês. Foi o primeiro que encontrei. Estava vazio. Já haviam todos desembarcado. Quem eu esperava encontrar? O que eu pretendia fazer? Não sei! talvez eu só quisesse olhar no rosto daquele que me trazia tamanha dor…

A sala foi tomada por um profundo silêncio. Todos olhavam para Giorgio esperando que ele continuasse a história.

– Então, é só isso? – pergunta Archbald, com desprezo.

Giorgio mantém silêncio.

Sigfried estende-lhe um copo – Bebei, italiano… bebei.

Giorgio bebe e deixa o copo tombar vazio sobre a mesa, depois acende um charuto, soltando vagarosamente a fumaça e continua:

Era noite profunda quando resolvi retornar à minha mansão. As ruas estavam ermas e quase nada se podia enxergar. Pareceu-me ter ouvido uma voz que me chamava. Era uma voz de homem.

Voltei-me e reparei num vulto que se aproximava. Uma figura alta, magra e de cabelos ruivos parou ao meu lado.

– Boa noite! – disse ele. Eu não respondi.

– Sabei… acabo de chegar de navio. Não conheço a cidade.

– Navio?… Navio inglês? – perguntei.

– Isso mesmo! – respondeu ele sorrindo.

Comecei a ficar curioso. Seria ele? O estranho continuou a falar:

– Estou viajando há dias. Passei antes em Paris…

– E viestes só?

– Oh, sim! Mas deveria haver pessoas me esperando. Aconteceu de meu navio se adiantar algumas horas. Assim sendo, decidi eu mesmo seguir ao meu destino sem esperar que me viessem buscar.

– Viestes a negócios? – perguntei ainda.

– Acreditas que vim casar-me?

O sorriso que dei foi diabólico; superado apenas por minha gargalhada…

– O que há? – perguntou-me.

Eu respondi, fitando-o sempre:

– Nada… Acho que sei quem és. Ele sorriu.

Então, companheiros, percebeis como é Satã que move todas as peças desse jogo insano? Quem sabe, se eu tivesse seguido por outro caminho, o homem também lá estivesse?… O fato é que tudo ficou instantaneamente claro para mim e uma idéia terrível iluminou meu cérebro.

O homem seguiu meus passos pelas ruas escuras da cidade. De quando em quando perguntava-me se ainda restava uma grande distância. Eu nada respondia e caminhava a sua frente, tentando ocultar o doentio sorriso de minha face. Paramos, finalmente, diante de uma mansão – a minha mansão. Ele ficou estarrecido – o aspecto da mansão era horripilante (imunda e triste). Parado, perguntou-me ainda:

– É aqui?!

Sacudi a cabeça afirmativamente, com um sorriso. Creio que a minha face tinha um ar de loucura: o homem tremeu ao ver minha expressão, meu riso satânico.

Mesmo receoso, ele adentrou a mansão.

É incrível: tudo transcorria como um plano meticulosamente armado; embora não fosse. Tranquei a porta sem que ele percebesse.

– Onde estão todos? – perguntou-me.

– Provavelmente na outra sala. Vou chamá-los – foi a minha resposta.

Quando retornei, com um machado em punho, ele finalmente compreendeu… Sua reação foi um gesto feminil: gritando, correu até a porta que eu havia trancado. Chorava, forçando a porta e tentando arranhar meu pesado mogno negro. O desespero cegou-o: ele nem percebeu quando me aproximei e desferi o golpe fatal. O crânio dele esfacelou-se em mil pedaços e o corpo tombou imediatamente, pesado como chumbo.

Depois, tomei um banho e troquei minhas vestes – não sabeis o quanto são pegajosos os fragmentos de cérebro!

Todos os moços gargalharam; Giorgio continuou, com ar profundo:

Dai para frente fiz o que havia de único que me interessasse: fui ter com Elenida. Chamei-a à sacada, assim como Romeu o fizera à sua Julieta. Ela atendeu-me com a surpresa estampada no olhar. Estava linda: a cascata de cabelos negros se-lhe escorria pelos ombros, a tez branca e os olhos cintilantes… usava uma veste branca, quase como um sudário. Segurei-lhe as mãos e beijei-as como se ali estivesse a minha felicidade. Ela falou-me com tristeza:

– Giorgio, vai-te… breve amanhecerá!

– Não, não! uma vez ainda, peço-te: não me abandones!

– Doido. É já muito tarde… não há alternativas.

– Fujamos! Fujamos para longe!

– Não percebes que tuas súplicas me torturam, que tudo que eu queria era fugir contigo?… E tarde demais…

– Não é tarde: ele não virá.

– O que? Como sabes?

Minha resposta foi um longo silêncio que completei com “ele nunca virá…”. Elenida entendeu.

– Bravo! Bravo, Romeu! Tua história comove-nos. -disse Sigfried aplaudindo.

– Belo final, italiano! Digno de uma bela novela romântica. Por que não nos declama algum soneto, alguns versos escritos ao luar da Itália?

– Basta de pilherias, Archbald! A história não acaba ainda. A desgraça não cessa de existir, a morte não pode ser parada.

– Há ainda mais que contar?

– Sim. Como eu disse, Elenida havia entendido tudo, havia percebido o horror de meu ato; ainda assim, decidiu fugir comigo.

Elenida deu-me a mão e saímos pelas ruas ainda escuras. Finalmente demo-nos conta de que não havia para onde ir.

A decisão veio súbita como a morte: fugiríamos de navio.

Foi fácil penetrar clandestinamente no navio norueguês. Como clandestinos, ninguém nos viu adentrar o porão…

Hoje eu percebo a seqüência de acasos – todos obras de Satã – que arruinaram minha vida e me transformaram nessa triste sombra de ser humano: encontrar o navio, matar meu rival, nossa clandestinidade fácil… se eu tivesse percebido que nada é fácil, que tudo era obra da desgraça e não da sorte, hoje ainda eu teria Elenida a meu lado.

Naquele porão passamos muitas horas de amor. Quando demo-nos conta, estávamos já em alto-mar.

Os três dias que se seguiram foram de um fogo abrasador, de uma paixão intensa. As carícias desse tempo nunca me deixaram a memória: eu a tinha nos braços, e nesse desmaio, eu afagava-lhe a face e pregava-lhe beijos. Quando dormíamos, Elenida dava-me a mão e nosso sono era tranqüilo; quando tínhamos fome, roubávamos o que havia de comestível no porão do navio, nossa sede era aplacada apenas pela embriagues do amor.

Às vezes eu a abraçava e jurava pela minha alma que tudo daria certo. Na verdade eu não sabia.

Ao quarto dia, a fadiga desabou sobre nós pesadamente: o sono veio implacável. Era tudo que nos restava.

Meu despertar veio da forma mais dura possível: acordei sob uma dor intensa… Nós havíamos sido descobertos.

O marinheiro que nos descobrira chutava meu corpo e gritava num idioma que me era ininteligível. Tentei reagir ao espancamento; era inútil… a sede, o cansaço: em poucos minutos eu estava acabado. Sequer pude ver o que era feito de Elenida.

Quando recobrei os sentidos estava rodeado de marinheiros homens horríveis, mutilados. Elenida a meu lado, inconsciente… Dois marinheiros de aparência grotesca seguraram-me pelos braços e forçaram-me a ficar de pé, meus joelhos dobravam-se como os de um ébrio, mas os homens não me deixavam tombar.

Os homens, falando todos a um tempo, a zonzeira de minha desidratação, os murros que eu recebera: tudo isso causou um baralhamento tal em minha mente que eu cria estar sonhando; a realidade parecia-me um rodopiar de imagens confusas.

A confusão dos homens cessou subitamente. Um homem de barba branca aproximou-se de mim – olhava-me nos olhos – de todos ali presentes, parecia ser ele o de menor deformidade: possuía uma profunda cicatriz no olho esquerdo. Segurou-me o cabelo, depois bradou em seu estranho idioma e gargalhou, os homens o seguiram em seu riso infernal. Minha mente principiava já a clarear: tarde demais, o homem tinha um brilho terrível em seu olho. Mais um grito e outros dois homens ergueram o corpo desfalecido de Elenida…

Sabeis, amigos, o que é temer pela única coisa que se ama na vida e nada poder fazer para resguardá-la? O desespero deu-me súbitas forças, debati-me contra as mãos que me prendiam… inútil, tudo inútil… Ah! maldição! Mil vezes maldição! Ainda hoje amaldiçôo o passado.

Esse homem de barba, os outros pareciam respeitá-lo. Bastou uma ordem para que começassem a rasgar as vestes de minha Elenida. Nesse instante eu gritava “não!”.Gritava a plenos pulmões. Gritava com toda a força que este mundo jamais viu… Meus gritos apenas serviram para diverti-los. A cada brado, mais eles a despiam.

Logo estava nua. Aquela forma divinal foi corrompida por todos os bastardos malditos que ali estavam. Minha fúria era descomunal, algo indizível. Para conter-me definitivamente, quebraram meus braços e pernas… Elenida despertou nessa agonia e lançou-me um último olhar, uma última lágrima: seu corpo não resistiu e Elenida morreu.

Ainda morta eles a violentaram por longas horas… eu chorava, assim como tenho chorado até hoje.

Por fim, lançaram seu corpo ao mar. Logo, lançaram-me também, ainda vivo.

Lembro-me do sufocar dos pulmões, das águas que me faziam rodopiar… depois veio a escuridão. Se eu tivesse algum motivo para crer em Deus nessa vida, esse seria o milagre… Mas, não! Até isso foi obra de Satã! Tudo foi um capricho desse maldito jogador!

Despertei na casa de uma família que me havia encontrado numa praia, eu dormia num leito já há cinco dias. Aproveitei-me da generosidade dessa gente pelo tempo que me foi conveniente. Quando percebi que meu corpo reunira já as forças necessárias à minha partida, fui-me embora sem voltar-lhes um adeus sequer. Meu agradecimento foi o instinto do ladrão: roubei-lhes o pouco dinheiro que possuíam, sem vestígio de remorso ou pesar n’alma.

Durante meses vaguei sem rumo pelas ruas da Europa. As lágrimas que não verti no enterro de meus pais foram vertidas à farta por minha amada… Elenida foi-se como se vão todos os anjos, todos os sonhos. Acho que é essa a melhor definição: Elenida era um sonho.

Um sonho maravilhoso o qual poeta algum pôde conceber. Entretanto, até os sonhos são capazes de afligir a alma de quem os sonha. Elenida era assim: um sonho que termina e deixa na alma nada além do vazio e o desconsolo do despertar.

Se a semente da morte de meu amor fez brotar na minha alma uma tristeza que seria infinita, trouxe também um fruto, um fruto que eu cultivaria no âmago de meu ser, certa noite eu cerrei os punhos e bradei ao vento que uivava: “vingança!”. “vingança e morte!!!”. Daí para frente, vingança seria minha vida…

Sabeis o que é viver em obsessão? Sabeis o que é ver diante de si, a qualquer hora do dia ou da noite, a figura de umhomem com a face rasgada? Sabeis o que é não dormir e sentir na boca o gosto do sangue de seu inimigo? Meus sonhos eram sempre os mesmos: o homem gargalhando, Elenida morre, depois eu o mato. Todas as vezes eu lutava com todas as minhas forças, mas, vez após vez, Elenida sempre morria… sempre era tarde demais…

Passaram-se cinco anos.

Com meu intelecto foi fácil erguer nova fortuna. Vali-me de meu dinheiro para conseguir informações sobre o navio norueguês – nada eu havia conseguido ainda. Aprendi com perfeição o idioma que os marinheiros falavam naquele fatídico dia em que Elenida morreu e levou consigo o pouco que eu tinha de humano e belo.

Em pouco tempo a minha riqueza assumiu um vulto espantoso. Mas cada cobre, cada grama de ouro, cada momento de minha vida e cada pensamento de meu cérebro convergiam apenas para um ponto: vingança. Percorri toda a Europa, não uma, mas várias vezes, à procura de uma mísera informação sequer, certo dia, um homem imundo veio à minha procura. Estava roto e fétido.

– É o senhor que procura o navio do homem com a cicatriz?

– Sou eu. O que queres?

– Ora, ora! Tem um tom assaz arrogante, moço! És muito indelicado.

O vadio tinha um tom arrogante não sabia, certamente, com quem brincava; entretanto parecia ter a informação que eu procurara por cinco anos. Ele sorria, confiante, com os poucos dentes que lhe restavam ainda na boca. Como me convinha, fui paciente.

– Conheces o homem? – perguntei.

– Por minhas tripas! Leve-me o diabo se não o conhecer!

– Então, desgraçado, falai! Falai!

O homem sorriu maliciosamente. Eu compreendi.

– Ah! a recompensa!… O que queres?

Ele fez uma longa pausa, as moscas o rodeavam. Finalmente decidiu-se:

– Quero o seu melhor vinho!

Eu não podia crer:

– O que?!

– Disse que quero o seu melhor vinho, bastardo de Satã! Traga-mo!

Cri que o homem fosse louco; mas trouxe a garrafa de meu vinho mais caro. Percebi que ele não era louco quando olhei em seus olhos de viciado, sempre fitos na garrafa que eu segurava. Eu quase não havia demorado em trazê-la, mas o mendigo parecia transtornado.

– Ei-la aqui. Mas não espere recebê-la ainda!

– És muito desconfiado, moço!…

– Ao diabo! Falai de uma vez, ou eu te mato!

Ele começou a falar:

– Conheci-o numa taverna, na mesa de jogo. Ganhei a partida, mas minha recompensa foi perder meus dentes… Vim-me embora da cidade e espero nunca mais lá retornar… Maldita seja Londres.

– Isso foi há quantos dias, mendigo?

– Foi há uns bons três meses. não é fácil vir de Londres até aqui praticamente com a força de minhas pernas!

Saquei meu punhal:

– Basta dessa pilhéria imunda! – bradei.

– Qual pilhéria que nada! Lá ele reside e lá ele tem uma filha… Agora o meu vinho.

– Teu vinho? Oh, sim.

Dei-lhe a garrafa. Ele a abraçou como se a amasse e saiu. Pouco depois o homem estava morto à minha calçada: fora veneno. O meu veneno

Nessa mesma noite segui viagem à Inglaterra.

A enorme vingança que eu planejara fez com que minha viagem durasse apenas três dias. Londres me era familiar, por minhas andanças eu a percorrera incontáveis vezes. Foi fácil encontrar meu destino: uma bela casa – na verdade uma mansão, onde o maldito deveria morar. Pensei invadi-la, degolá-lo; mas, não sei porque, simplesmente bati à porta. Alguém abriu: era ele, as barbas brancas, a profunda cicatriz.

Ficamos de pé, um diante do outro – a atonia fez-me mudo – ele olhava-me profundamente, como se me reconhecesse. Ele quebrou o silêncio:

– Pois não?

Silêncio.

– Pois não? – repetiu.

Ah, como eu queria matá-lo! Como eu queria arrancar seu coração!… O infeliz nem se lembrava mais. Não recordava o meu rosto, o rosto da vida que ele desgraçou… Eu nunca poderei esquecer por um segundo ao menos. Sofreei a raiva a custo: expliquei que era um viajante – rico – e que não tinha onde passar a noite. Pedi para ficar: ele deixou. Eu sorri porque sabia que ele havia deixado a morte adentrar a própria casa.

Deitado num leito eu fantasiava mil maneiras de matá-lo; nenhuma era cruel o bastante…

Levantei-me antes dos primeiros raios da manhã: eu sentia uma fúria que borbulhava no sangue, um ímpeto assassino. Minha inquietação fez com que eu caminhasse pela casa, vasculhando-a quem sabe, procurando uma evidência de que a morte da pessoa que eu mais amava, ao menos causara naquele homem uma seqüela: nada. Haviam nas paredes uns quadros bizarros, cenas apocalípticas, carnificinas; um, entretanto, contrapunha-se às outras cenas: era uma mulher, um anjo puro e luminoso que irradiava beleza. Essa pintura, em especial, fascinou-me enormemente. Era assim comigo: Elenida era o meu anjo num mundo de atitudes bizarras. Passei horas, absorto.

Uma voz masculina despertou-me:

– Gostas?

Era ele.

– Sim. – respondi.

– Ah! São apenas as extravagâncias de um velho!

– E quanto a este? – apontei-lhe o retrato do anjo. O maldito sorriu-me:

– Este é um mimo à minha filha. Ela achou horríveis estes outros e trouxe-me o anjo, para atenuar, creio.

Eu não tirava os olhos dele.

– Oh! O vosso nome, moço? Não o perguntei?

– Não… Mas tu me conheces. meu escárnio era grande.

O velho fitou-me mais profundamente… por um instante pareceu lembrar-se:

– Você é… – uma voz interrompeu-o: – Papai? é o senhor? -disse a voz… Uma jovem encantadora adentrou a sala. Abraçou e beijou o velho, carinhosamente.

– Já vistes minha filha, senhor…?

– Giorgio.

– Eu sou Balzac. Esta é a minha flor, o meu sol: minha filha Angélica.

O velho tinha razão nas comparações à sua filha: ela era linda. Longos cabelos louros completavam com os olhos verdes e os lábios aquela irreal e perfeita visão. A dama saudou-me e chamou-nos ao café.

Ainda nesse dia propus ao velho que me deixasse ficar mais uns dias. Pelo preço certo ele aceitou.

À noite, tudo era silêncio. Com facilidade integrei-me à rotina da casa. Numa dessas noites, escondi-me no quarto do velho. O cortinado ocultou minha presença… Logo ele estava dormindo um profundo sono. Tirei do seio um frasquinho que trazia escondido, aproximei-o a aos lábios do velho e verti-lhe algumas gotas, que ele absorveu sem senti-las. Logo seu sono era profundíssimo devido ao narcótico. Até que amanhecesse, velei naquele quarto sombrio.

Ao acordar, algumas horas depois, o velho disse-me que sonhara. Sonhara que morria e que Satã velava em seu túmulo… Eu era Satã.

Noite após noite eu dopava o velho e velava a seu leito como um demônio vela por sua presa. Cada vez mais, os pesadelos que o assolavam eram horrendos. Eu me deleitava em vê-lo se debater no leito, sendo devorado pelos fantasmas de seu próprio inconsciente.

Durante o dia, eu cuidava em dissimular uma face sorridente. Dois meses passaram.

Se nesses dois meses eu dissimulei tudo, uma coisa era real: a afeição de Angélica. Ela abraçava-me, lia-me poemas… às vezes convidava-me para dançar, quando eu não aceitava, tomava-me à força pelo braço e obrigava-me a sorrir enquanto dançava… Como ela era alegre! Como irradiava vida!

O velho criou por mim um carinho paterno e sincero. Quando a noite chegava eu agora velava pelos dois quartos: o velho que se atormentava nos sonhos e Angélica, que eu vigiava num sono tranqüilo e feliz.

– Estavas apaixonado pela moça, Giorgio?

– Não creio que fosse paixão, Sigfried. Era ternura! Angélica realmente era como um sol: fazia tudo brilhar, tudo ter vida. Era belo vê-la dormindo seminua no sono da inocência, coberta apenas por um tênue véu. Era fascínio. Ela era como a pintura que tanto gostava:

eu não podia amar pinturas.

Certa noite deparei-me com Angélica num escuro corredor da casa – estava misteriosa -. Eu ia falar-lhe, mas com o dedo indicador diante dos lábios pediu que fizesse silêncio. Obedeci. Subitamente Angélica roubou-me um beijo e disse que me amava, depois se foi, sorrindo.

No outro dia o velho chamou-me a passear:

– Giorgio… Sabei, filho, em muito me agradaria que se casasses com minha Angélica! …

Isso muito me abalou… Talvez eu pudesse ser feliz ao lado de Angélica. Disse que precisava pensar. O velho pôs a mão em meu ombro e sorriu; eu sai.

Uma hora depois, enviei ao velho um bilhete: eu tinha já a resposta e queria encontrá-lo numa velha casa que eu comprara ali por perto.

Não demorou para que ele chegasse. Adentrou a casa, chamou-me; não respondi. Quando ele aproximou-se mais de um ponto onde a treva era imensa, atingi-o violentamente e ele caiu, inconsciente.

Ao recuperar a consciência o velho viu-se preso por correntes à parede. eu estava sentado a sua frente.

– Giorgio? O que significa isso?

– Isso, velho, é vingança.

– Estás louco? Solte-me!

Eu sorri…

– Vingança?… falais em vingança. Vingança de que?

– Então, não sabes? Não me reconheces? Olhai mais de perto! – aproximei-me.

– Doido!!!

– Não te lembras? Eu sou o clandestino que jogastes ao mar para morrer há cinco anos! Lembras-te da minha noiva?

O homem tremia, estava gélido de pavor.

– Não é possível!

– Sim, velho, é possível! Foi Satã quem o quis!

– Isso é passado… eu não quis… não sou mais um pirata!

– A vingança é eterna como a morte, velho, você vai pagar!

– Piedade!

– Piedade? E teve você piedade da virgem que morria? Teve você dó de me tirar tudo que eu tinha de caro e me matar… Eu morri. Mas os cadáveres têm sorte, porque descansam; eu ainda estou aqui.

O bastardo lamentou e chorou… embalde. Finalmente foi tomado por um súbito assesso de dignidade:

– Então mate-me de uma vez, traidor!

Eu gargalhei:

– Ha! ha! ha! Matar-te é pouco!

Fiz, então, silêncio absoluto, como se fechasse meus olhos e ouvidos às súplicas e lágrimas daquele homem que, em seu tempo, jamais havia de ter chorado ou suplicado por motivo algum.

Logo ele percebeu que eram inúteis os seus esforços e deixou-se estar, abatido e subjugado pelos elos das pesadas correntes que o prendiam. Eu o observava com o mais sombrio ar, da mais terrível penumbra… sempre em silêncio…

Passou-se uma hora.

Súbito, uma doce voz chamou-me pelo nome: era Angélica. O velho teve um semblante de terror tão profundo que igual eu só vira uma vez na vida, em Elenida. Tapei-lhe a boca para que ele não alertasse a filha e chamei-a… Ela veio sorrindo ao meu encontro; então parou, petrificada pelo choque da cena.

A inocência de Angélica, seu amor por mim, tudo isso fez com que aquele anjo não entendesse ou não pudesse entender o que se passava. Ela olhava para mim e olhava para o pai, acorrentado e chorando…

Ah, amigos!… Não sabeis quanta dor me causa essa história! Dêem-me vinho para que eu possa prosseguir.

Giorgio bebeu e continuou:

Como eu dizia, a confusão da jovem era imensa.

– Giorgio… o que se passa? – perguntou-me com uma voz infinitamente cândida.

O velho não me deixou responder:

– Fuja! Fuja! – bradou desesperado.

Sem saber o que fazer, Angélica pareceu-me que ia entrar em pânico: devia ser grande o caos em sua mente. Ela não sabia o que fazer, o que pensar… Nesse frenesi eu estendi-lhe as mãos. Ela segurou-as confiantemente e fitou em mim seus brilhantes olhos de esmeralda.

Ah, como eu quis acalentá-la! Como eu quis beijar as pequenas e suaves mãos daquele anjo tão alegre e sensível… Mas, não! Nesse momento eu segui o caminho que Satã me traçara: endureci meu coração a tudo que me restasse de humano. Segurei com mais firmeza as mãos de Angélica, apertei-as, cada vez mais forte… cada vez mais… Ela, não suportando, ajoelhou-se a meus pés.

Nesse instante, amigos, eu quis ver; mas minhas lágrimas não me permitiam…

O velho parecia louco: implorava, forçava as correntes, gritava… Tudo embalde… Eu estava cego.

Depois, fiz em mil pedaços as vestes daquele anjo que tremia de pavor: violentei-a. Violentei-a, mas não pude resistir ao meu ato. Foi por compaixão, quase amor, que eu terminei com o sofrer daquela criatura da inocência: degolei-a e ela morreu sem quase sentir…

Tanto tempo eu chorei sobre o cadáver de Angélica, que pareceu-me esquecer, por um segundo, a vingança… logo Satã reavivaria a minha memória.

Aproximei-me do velho, olhei bem fundo em seu único olho bom e balbuciei: “vingança…”.

Ele não queria morrer, mas as correntes o prendiam bem. Saquei meu punhal, já manchado pelo sangue da pureza, e cortei-lhe os dois pulsos… Era o fim: de início, ele gritava e debatia-se, depois, de pouco em pouco, a voz foi cessando, os movimentos foram tornando-se menos bruscos… finalmente silenciou-se.

Permaneci ali até a última batida de seu coração.

Fugi de Londres e prometi jamais retornar; entretanto, um ano depois dessa desgraça, retornei e mandei erguer à Angélica o mais belo e imponente jazigo da Inglaterra… Nele, velam dois anjos que eu amei.

– Bravo! Brevíssimo, italiano! Tua história é triste como a agonia e bela como a morte! – aplaudiu Sigfried. Contudo, escapa-me um detalhe: dissestes que uma doce voz te havia chamado. Como a bela Angélica chegou a ti, se era um segredo o local que escolhestes para tua vingança?

– Insistis nisso? Deixai que o passado descanse novamente no túmulo do esquecimento…

– Deixai que eu responda por ti, Giorgio! O italiano enviara, também, um segundo bilhete para a donzela. Pagou os serviços do mensageiro, pagou o segredo e cumpriu seu negro destino.

– Como sabes disso, L’Estat’?!

– Também eu fui a Londres e fascinado pela beleza de um jazigo esplêndido, perguntei a quem ele pertencia… Contaram-me então, a lenda de um italiano assassino e a tragédia dos anjos que morreram.